Ornitorrinco

O gerente foi embora um pouco mais cedo e João aproveita a deixa para sair logo em seguida. Num desses raros acasos, o trânsito não estava tão congestionado e João chega em casa quase uma hora antes que a habitual. A esposa, que trabalhava somente meio período, certamente já estaria cuidando da filha e preparando o jantar.

"Ótima oportunidade para organizar as ferramentas na garagem, aquilo está uma bagunça!", pensou ele. Afrouxando a gravata, entra na cozinha e encontra Cecília, a filha de oito anos, fazendo a lição de casa na mesa de jantar e Lúcia, a esposa, cozinhando junto ao fogão. Antes mesmo de dar um beijo no marido, a esposa dispara:

- Que ótimo que você chegou mais cedo! Me ajuda com a lição de casa da Ciça? Estou atarefada com a janta...

"Mas que diabos!", pensou João, "não posso chegar cinco minutos antes que ela já me passa tarefa?". Contrafeito a princípio, olha para a filha, seu xodó, e em poucos instantes se esquece das ferramentas na garagem, respondendo:

-Está bem, eu ajudo.

Sentando-se numa cadeira ao lado da filha, esta - toda sorridente - explica para o pai a lição a ser feita:

- Pai, preciso escrever sobre os marsupiais! Aqui está escrito assim: o que são os marsupiais?

E o pai responde:

- Vamos ver isso já! Ele saca seu celular do bolso, clica no Google e digita: marsupiais wikipedia. A consulta rapidamente retorna o sítio da enciclopédia digital com o termo procurado. E diz à filha:

- Ciça, escreve aí: os marsupiais são mamíferos, em que a principal característica é a presença, na fêmea, de uma bolsa na barriga, chamada marsúpio, onde...

A menina pára de escrever, interrompe o pai e pergunta:

- Pai, o que é mamífero?

- Mamífero é todo bicho que carrega os filhotinhos dentro da barriga. E depois que os filhotinhos nascem, a mãe os alimenta com leite.

- Então nós somos bichos também?

- Não! Quero dizer, sim, mas isso não vem ao caso agora. Vamos voltar aos marsupiais?

- A mãe canguru carrega batom na bolsa dela?

- Não, Ciça! A mãe canguru só carrega o filhote!

- Mas eu vi um desenho em que a mãe canguru carregava batom, espelho, um monte de coisas. E também o filhote!

- Ciça, isso é só um desenho, não é de verdade. Anda, vamos fazer essa lição! Onde estávamos? Ah sim: bolsa na barriga, chamada marsúpio, onde se processa grande parte do desenvolvimento dos filhotes. Escreveu? Muito bem! Qual a próxima questão?

A menina responde:

- Fale sobre o ornitorrinco.

João novamente procura pelo termo no celular e diz:

- Muito bem, escreva aí: os ornitorrincos possuem bicos e patas parecidas com as dos patos, corpo e cauda semelhantes aos do castor. Junto com as équidnas, são os únicos mamíferos que botam ovos e que...

Cecília interrompe mais uma vez a escrita, arregala os olhos e diz:

- Pai, então as galinhas são mamíferas?

- Não, Ciça, as galinhas botam ovos, mas não são mamíferos, são aves. Você já viu galinha amamentando os pintinhos?

- Não sei... nunca vi uma galinha! Mas porque o ornitorrinco bota ovo?

- Não sei filha, ele bota ovo porque é uma exceção...

- O que é exceção?

- Exceção é aquilo que é diferente dos outros.

A menina cai na risada, bate palmas e exclama:

- Pai, você é um ornitorrinco!

- Porque eu sou um ornitorrinco?

- Porque você é uma exceção!

- Eu sou uma exceção? Quem te falou que eu sou uma exceção?

- Foi o tio Carlinhos quem falou. Ele disse assim: os meus cunhados estão todos muito ricos, mas o João é exceção!

"Carlinhos, seu sonso! Deixa eu te encontrar que vou te dizer umas poucas e boas!", pensou João. Carlinhos, irmão de Lúcia, era um tipo irônico, que não ia muito com a cara do cunhado. A recíproca era verdadeira. João se vira para a mulher e exclama, irritado:

- Lú, porque é que você não manda o seu irmão cuidar da vida dele? Eu ainda perco a paciência com esse sujeito!

- Ah benzinho, deixa pra lá, você sabe que ele é meio abobado mesmo...

- Papai é um ornitorrinco, papai é um ornitorrinco!, cantarolava a menina, gingando na cadeira.

"O que é que eu tinha planejado fazer quando chegasse em casa? Ah sim, arrumar as ferramentas na garagem...". Sentado na cadeira com um ar cansado, João se apruma, esfrega o rosto com as mãos, respira fundo, se volta para a filha e, com um olhar súplice, diz:

- Ciça, vamos terminar essa lição?