Respeitável Público!

O povo da minha cidade é alegre, bem humorado. Mas antes de tudo, é um povo cordato. Tanto é verdade que a praça central, lá onde ficava o coreto, a igreja matriz - dedicada a Nossa Senhora dos Andarilhos das Meias Rotas - o comércio, e onde também girava a vida social de nossa gente, com os passeios das famílias aos sábados à tarde, os namoricos dos jovens à base de sorvetes de massa, as quermesses das festas juninas, as guirlandas com pequenas luzes coloridas enroladas nas árvores para o Natal, tudo foi demolido, arrancado e terraplanado para dar lugar a uma imensa lona de circo. Houve até um princípio de indignação, de estupefação pela audácia dos mambembes, mas tudo ficou em alguns muxoxos e um ou outro nhé-nhé-nhé. E só. Sim, nosso povo é muito cordato.

E desfalecido o espanto inicial, nasceu a curiosidade daquelas gentes a querer saber o que o circo teria a lhes oferecer. Mas o circo, logo se descobriu, pouco oferecia, e qual não foi a nossa surpresa ao tomar conhecimento de que o comparecimento aos espetáculos, diários, era obrigatório e pago. Muito bem pago. Ainda assim, e apesar de comentarmos inconformados a má nova - alguns bradaram impropérios e houve até quem brandisse os punhos fechados contra essa arbitrariedade - em um ou dois dias (gente boa essa nossa) toda aquela imposição foi devidamente digerida e o bom humor, a alegria e a felicidade tornaram-se a tônica novamente.

Mas ainda não havia acabado, isto é que não, senhoras e senhores! O cúmulo da audácia dos mambembes foi nos notificar que os artistas do circo seríamos nós mesmos, à exceção dos palhaços, que eram os donos daquela farra. Todos os dias, inexoravelmente, seriámos nós a fazer mágicas, todas incríveis, admito, mas desgraçadamente difíceis de executar. Seríamos também os domadores de feras; muita gente lá teve a cabeça arrancada pelos leões e tigres, mas como eu comentei outrora, éramos assaz cordatos e tudo sempre acabava bem. A turba até aplaudia as feras, ao fazer de refeição um mal-ajambrado e azarado domador. Todos nós, sem exceção - veja que curioso, nem sabíamos disso! - nos descobrimos excelentes equilibristas, operávamos verdadeiros milagres nessas lutas contra as forças da gravidade nas cordas bambas sob as lonas lustrosas, ajeitando-se como podíamos nos monociclos, com dois elefantes dependurados, um em cada ombro, lançando aos ares os vinte e tantos malabares, argolas e outras bugigangas, e mordendo com a boca uma colher de café e equilibrando um ovo de avestruz na pequena concha do talher.

Como eu havia dito, os proprietários do circo eram os palhaços. Eram eles que determinavam o quê, o quando e o como. Recebíamos diariamente pelo zap-zap mensagem contendo a descrição dos números que seriam apresentados naquele dia, quem operaria como platéia e quem seria o artista da vez. Num desses dias tive folga - como eram desejadas essas folgas! - e foi com satisfação que me encaminhei para o espetáculo daquela noite como parte dos espectadores. A apresentação e as vênias de praxe foram feitas pelo mestre-de-cerimônia: "Respeitável público!", que anunciou como primeiro número - era sempre o primeiro - a algazarra orgiástica dos palhaços. Iniciada a apresentação, atentei para algo que até então não havia notado: de todos os palhaços o mais sem graça, o mais simplório, aquele que notadamente não passava de um reles amador era, justamente, o Tiririca...