Eterno último dia

Sei que eu já estou demitido, que já não tenho trabalho nenhum a fazer em Brasília, mas ainda vou trabalhar, ainda entro no prédio, passo meu cartão na roleta da entrada, aperto o botão do elevador, subo até o 14º andar, caminho até a sala de sempre, sento-me à frente do computador e trabalho, como de costume. Não sei que tipo de teimosia me move, talvez eu espere com isso convencer o chefe de que eu deva ficar. Mas tenho sempre o receio de que ele ou outra pessoa vai vir até mim e falar “escuta, não é mais para você vir, já acertamos a sua saída”, e a isso eu nada poderei contrapor, por ser a pura verdade, mas, que diabos, eu quero continuar indo trabalhar.

Meu receio, no entanto, se mostra infundado, pois nem o chefe nem ninguém parece dar mostras de se preocupar com a minha presença ali. Até acho que o chefe me evita, sabe que estou ali, sabe que eu não devia estar ali, que não tenho nada o que estar fazendo ali, mas não me procura, não me fala nada, permite que eu fique, embora eu esteja certo de que não irá me pagar um único tostão no fim do mês. É um trabalho inútil o meu, mas ainda é um trabalho.

Percebo, para o meu espanto, que há por ali outros funcionários, gente que foi demitida antes de mim, mas que agora está ali trabalhando outra vez, e isso me tranquiliza, chego até a interagir com alguns deles, conversamos sobre as coisas do trabalho como se nada tivesse acontecido. Sei, apesar de tudo, que não posso ficar ali para sempre, que em breve eu vou partir, deixar a cidade vez. Não estou triste nem feliz, só quero aproveitar ao máximo o meu tempo ali.

Saio então do trabalho, saio e tenho a nítida sensação de que estou vivendo o meu último dia em Brasília. Percebo que ainda dá para fazer muita coisa até o fim do dia, que dá para me despedir de muitos lugares e de algumas pessoas, que ainda posso fazer uma infinidade de coisas pela última vez, e fazer com a consciência de que é a última vez, fazer pensando no que estou fazendo, para deixar tudo gravadinho na memória, para me lembrar quando estiver longe.

Isso me deixa tão contente, sou inundado por grande alegria, a de saber que tenho a oportunidade de fazer tudo isso, que não preciso sair correndo, às pressas, como um dia eu quase saí de Brasília. Vou ao Setor Comercial, onde almocei incontáveis vezes, vou e escolho um restaurante, “o último restaurante em que eu almocei em Brasília”, demoro um pouco a escolher, talvez eu devesse ir até a rodoviária, “a última vez que eu fui à rodoviária de Brasília”, e ali me ocorre a ideia de ir até o zoológico, ao zoológico eu nunca fui, mas agora eu tenho tempo, agora eu posso ver todas as coisas de Brasília, sem nenhuma preocupação que não seja a de aproveitar a visita.

Também há pessoas para visitar, gente como Dom Canuto, que foi quem me abrigou aqui nos primeiros meses, é gente que vou ver pela última vez, mas não há tristeza, estou é contente por cumprir as minhas obrigações de gratidão, estou contente por cumprir todas as obrigações com Brasília, saio daqui em dia com a cidade, e nesse momento eu acordo.

Acordo e percebo que é um daqueles sonhos que tenho dia sim, dia não, desde que saí de Brasília há um ano e meio. Tive, na realidade, uma semana inteira para me despedir da cidade, e o fiz em um clima muito parecido com o do sonho. Só não deu para ver o zoológico e nem encontrar Dom Canuto (e também não fui trabalhar). É engraçado que eu sonhe tanto assim com a cidade, eu que, nos seis anos que lá morei, não sonhei uma noite sequer. É como diz o chavão: “Seis anos não são seis minutos”. E o subconsciente é aquele corvo a grasnar:

– Nunca mais! Nunca mais!

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 21/01/2018
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