OS CABELOS DA SOGRA

Ainda estavam no mesmo lugar em que ela os deixou, pela manhã.

Depois que mamãe foi para casa após um final de semana conosco, Geraldo correu para o banheiro para verificar se mamãe tinha deixado o chão sujo de novo.

Meu marido costuma dizer que os cabelos dela são uma forma de demarcar território. Já avisei que mamãe está idosa e a queda é comum em pessoas de sua idade. 

-“Balela! É de propósito!” – insistia Geraldo em implicar convicto de sua impressão.

Na verdade, eu já havia reparado que na casa da mamãe não apareciam tantos cabelos assim em seu banheiro que era branco como o nosso... Não! Era impressão minha.

Geraldo até pensou em colocar uma câmera escondida para me provar que tudo era uma conspiração criada por mamãe para desestabilizar o nosso casamento. Claro que fui radicalmente contra e achei um absurdo essa invasão de privacidade. Onde já se viu? Ficar bisbilhotando a intimidade de minha querida mãezinha. Ah, Geraldo!

Além disso, eram apenas cabelos no chão. Possivelmente, de tanto produto químico que deveria usar, já que retocava a pintura de seus cabelos todos os meses. O que irritava mesmo era a implicância do Geraldo e, principalmente, quando ele me chamava como uma criança a apontar a arte de outra, me levando ao banheiro para mostrar a “cascata cabeluda” que mamãe deixara “de presente”.

Naquela semana, Geraldo resolveu tomar uma atitude absurda.

-“Cansei! Vou falar com sua mãe, já que você não tem coragem. Ela vai passar o feriado aqui?” – falou em tom ameaçador.

-“Se quiser, eu peço para que ela não venha.” – respondi para evitar dores de cabeça. 

-“Vem ou não vem?” – me encarou.

- “Olha, ela vem sim. E se você pensa que vai destratar a minha mãe, pensando que ela é como a sua que atura os seus “pitis” pode ir tirando o seu cavalinho da chuva. Com a minha mãe, falo eu. Essa situação está ficando insuportável. Eu irei a casa dela hoje.” – fiquei zangada e saí batendo a porta, deixando-o estupefato.

Há muito tempo estou cansada dessa perseguição do Geraldo à minha mãe. Tudo tem limites, né? Estávamos passando por uma fase em que deveríamos estar desfrutando de nossas aposentadorias, fazendo viagens, curtindo amigos, visitando nossos filhos e netos. Acho que Geraldo já estava ficando caduco. Por isso, tanta chatice! Nem mesmo quando não pôde renovar sua habilitação quando foi reprovado no exame de vista, em virtude da catarata que começava a incomodar. Nunca o vi tão irritado como ultimamente.

Decidi ir de ônibus mesmo. Peguei o primeiro que passou após uns 20 minutos de espera. Não liguei, tentei me distrair olhando pessoas pela janela e divagando o quanto todos nós somos diferentes uns dos outros. Mas, fazemos parte do mesmo “gado” e somos adestrados para realizarmos as mesmas tarefas, caminhar pela mesma trilha, cumprir os mesmos horários. O trajeto é sempre o mesmo, a sociedade cobra comportamento, atitude, impostos, honorários. É o preço de nascer humano. E, misturando tudo isso, concluo que o homo sapiens evoluiu porcaria nenhuma! Droga! Já estava me aborrecendo com meus próprios pensamentos. Influência do Geraldo! Eu precisava estar calma para conversar com a mamãe e tomar cuidado para não ofendê-la. 

Desci a dois pontos para passar na padaria e comprar o seu bolo favorito, onde eu comprava minhas balas Juquinha quando criança e mariola. Ah, que saudade da mariola! Ia comprar mariola também. E que se danasse a ponte que coloquei semana passada. A minha dentista jurou que eu poderia comer normalmente e de tudo.

Mamãe ia gostar do bolo, com certeza. Eu pensei em fazer um chá ou passar um cafezinho, enquanto arrumava uma desculpa para contar a chatice do Geraldo logo de uma vez. Até porque ia estranhar minha visita, à tarde. Afinal, tinha saído lá de casa às 7 da manhã.

Toquei a campainha e ouvi barulho de uma porta batendo. Provavelmente, a da área, local de forte corrente de ar, e eu já tinha comprado um calço que mamãe insistia em esquecer de usar. Toquei de novo e nada. Esperei mais alguns longos dois minutos e bati à porta. Fui à rua para olhar as janelas e ver se tinha alguma aberta. Todas! Mamãe nunca deixava as janelas abertas ao sair de casa, trauma de quando eu fiquei dependurada, com uma das pernas para fora, quando escalei uma delas depois de subir no sofá, aos três anos. Fiquei preocupada. Gritei seu nome e voltei ao interior do prédio e toquei a campainha de novo, enquanto esmurrava a porta. Meu coração ficou apertado e senti um nó na garganta com uma sensação de horror, quando lembrei de ligar para o celular dela. Ninguém atendeu. Liguei para o Corpo de Bombeiros, para a polícia, para a vizinha, para Geraldo e para Seu Aprígio, que era um senhor com quem ela fazia aulas de dança de salão todas as quartas-feiras. A vizinha veio rápida e solícita:

-”Wanda, menina, fique calma! Vai ver ela deu uma saidinha."

-”Oi, Dona Marlene! Eu deveria ter ligado para ela antes. Resolvi vir, de repente. Estou preocupada porque ela nunca deixa as janelas abertas quando sai. Eu ouvi uma porta bater e ela não atende ao telefone. Maldita hora que deixei ela tirar o telefone fixo e ficar só com o celular. Fico sem referência."

Os bombeiros chegaram. Pedi que entrassem e me identifiquei como filha e mostrei a conta de luz que eu pagara naquele mês. Eles perguntaram se poderiam arrombar a porta e foi ali que pensei que poderia ter chamado um chaveiro também, mas… Praticamente, ordenei que arrebentassem a fechadura! Entraram com um pé-de-cabra e fiquei apreensiva, parada como uma idiota, com medo, do lado de fora. Demoraram segundos suficientes para que eu corresse para saber da minha mãe. Encontraram-na desmaiada na área, com uma toca na cabeça e um cheiro forte de amônia no ar. Ao seu lado, uma daquelas pranchas de cabelo e uns pacotes de várias tintas e produtos para o cabelo. Ela saiu de maca e uma máscara de oxigênio e um dos socorristas me avisou que ela estava desacordada, respirando. 

Deixei o bolo e as mariolas em cima da mesa de jantar e pedi à Dona Marlene que cuidasse da casa e chamasse um chaveiro para colocar uma tranca com cadeado até eu poder mandar consertar a porta e saí correndo para acompanhar a minha mãe na ambulância. Geraldo chegou com os olhos arregalados e foi informado que não poderia ir junto, mas que iríamos para a Santa Casa e ele me acenou para seguir com minha mãe, que ele iria em seguida. Nossos olhos nunca foram tão cúmplices. Ele sabia o quanto eu amava a minha mãe. Por quantas coisas já tínhamos passado juntas, o tanto que ela lutou para me ver em uma faculdade, para me dar educação e o quanto se orgulhou no dia da minha formatura. Mesmo não gostando muito do cara que eu conhecera durante o estágio e com quem me casaria 6 anos depois. Ele sabia que ela não simpatizava muito com ele, mas quando ficou doente, com pneumonia, foi a canja dela que o ajudou a se recuperar, fora os medicamentos e o xarope de ervas que ela preparou. Que nossos filhos só queriam ficar na casa da vovó Neuma, e não na casa da mãe dele, quando viajávamos. E quando nos tornamos avós, ela nos falou sobre congelar o sangue dos cordões umbilicais de nossos netos porque leu uma reportagem sobre células-tronco e não fazíamos ideia do que era. Tinham uma relação de tolerância, mas eu sabia que a admirava. 

Na ambulância, me perguntaram nome, idade, se sofria de alguma doença cardíaca, se tinha diabetes, câncer, estas coisas ruins… Disse que não sabia sobre nada disso. Descemos rápido da ambulância quando chegamos ao hospital e entraram correndo com ela. Tive que esperar. Fui ao balcão preencher sua ficha e Geraldo chegou em seguida. Não falamos nada. Sentamos e ficamos abraçados. 

Quarenta minutos depois alguém chamou pelo meu nome. Apertei o braço de Geraldo que me olhou nos olhos e beijou a minha testa. Fiquei mais tensa e ele me confessou, com os olhos cheios d´água: “-Também estou triste e devastado. Sempre gostei da Neuma. Ela sempre foi uma mãe para mim.”

Caminhando em direção ao médico gelei.

Gelei e degelei: como sabiam o meu nome?

Entramos na área restrita e o médico me perguntou há quanto tempo mamãe vem usando produtos no cabelo. Disse que há muito tempo, mas não sabia o motivo da pergunta. 

-”Vou esclarecer”. – disse o médico – "Sua mãe sofreu uma intoxicação provocada pelo uso excessivo destas misturas que provocam distúrbios respiratórios. Ela deve parar imediatamente.”

-”Ela está bem, doutor?”

-“Sim, está. Mas, inspira cuidados e precisa de descanso e vai tomar os medicamentos que prescreverei. Contudo, precisará ficar hospitalizada por mais uns dois ou três dias para desintoxicar.”

Respirei aliviada. Perguntei se poderia vê-la. Ele consentiu.

Mamãe estava sentada, conversando com uma enfermeira, já sem a touca, com máscara de oxigênio, medicamento na veia e com os cabelos vermelhos. Arregalei os olhos e fiquei parada na porta. Ela me olhou, sorriu e fez sinal para que eu me aproximasse.

-”Mãe, o que foi isso?” - perguntei preocupada com seu desmaio, por tudo o que ouvira do médico.

Com a voz meio abafada, ela respondeu: -“Demorei para tirar a tinta. Que droga, né? Agora o Geraldo vai reclamar que o chão do banheiro dele vai ficar parecendo um salão de baile de Carnaval: cheio de serpentinas!"

Abracei mamãe e caímos na gargalhada.

Daniela Pucu
Enviado por Daniela Pucu em 23/01/2018
Reeditado em 23/01/2018
Código do texto: T6234354
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