SAMPA VERSUS PATIFES

Durante boa parte de minha infância, meu pai ligava o rádio às seis da manhã, para ouvir as notícias, e o mantinha sintonizado em jornais, até perto de nove ou dez horas. Quem tem esse costume sabe que muita coisa se repete, no dia a dia, mas a constância permanece, e ouvíamos as mesmas vozes, vinhetas, comerciais e brincadeiras, à exaustão.

Lembro-me de uma canção, entre outras, que decorei e nunca esqueci:

Bom dia meu São Paulo, terra da garoa;

São Paulo que estremece ao despertar.

Bom dia meu São Paulo, de sul a norte;

São Paulo que levanta pra trabalhar.

Bom dia meu planalto do Piratininga!

Bom dia céu paulista! Bom dia interior!

Bom dia São Paulo de gente forte,

Sem preconceito de raça e de cor.

Quem tem mais de cinqüenta anos, deve ter ouvido tal canção.

Como hoje é aniversário dessa minha cidade natal, resolvi transcrever os versos, ainda que minha lucidez seja suficiente para entender que a realidade não é, exatamente, como recita o autor. Todavia, respeito a pujança paulistana, com todos seus gigantescos defeitos, vícios e injustiças. Há outras canções que a descrevem com bastante realismo.

Desse período da infância, guardo recordações de cantos dessa cidade, que já não têm a mínima semelhança com o que vai em minha memória, mas foi ali que aprendi muita coisa. Em Sampa comecei a escrever, compor, observar, ler, tocar instrumentos, aprender ofícios e entender alguns assuntos, inclusive política. Os noticiários ajudaram muito nisso.

Era uma época confusa, de renúncia de Jânio, trapalhadas de Jango, revolução, que entronou militares, passeatas, atentados, muita violência e medo. Ao optar por um viés artístico, em minha adolescência, automaticamente, virei alvo preferencial dos milicos, e passei por um bocado de apuros, mas sempre optei por moderação e temperança, mesmo quando preso e maltratado. Sempre fui contra qualquer tipo de violência, verbal, física, literária, musical, teatral ou outra; e nunca me submeti, ao mesmo tempo em que evitava o confronto direto.

Conheci muita gente, hoje famosa, mas que na época começava ainda a trilhar um caminho bastante tortuoso, que poderia ser virtuoso, mas nunca o foi. Acompanhei a trajetória de vários artistas e políticos, nesses últimos cinqüenta anos, e posso dizer, de boca cheia, que não encontrei quase nenhum que valesse a pena. Presidentes, governadores, prefeitos, legisladores, líderes partidários, ministros, secretários, além de artistas, empresários e outros, além dos que já estão no estaleiro ou mortos. Conheci de perto muitos desses, mas nunca me aproximei ao ponto de desenvolver amizade ou relacionamento profissional, além de situações eventuais ou compromissos inevitáveis.

Hoje vejo a polarização política, e lamento, profundamente, ver pessoas defendendo algo ou alguém, que já demonstrou mau caráter, já roubou acintosamente, enquadrilhou as ações, e se faz de vítima, mas é só aparência e illusionismo, calcando tudo num histórico romanceado.

Maquiavel dizia, séculos atrás, que enganar o povo é muito fácil, de um lado ou outro, e que para isso bastava falar o que queriam ouvir, enfatizar a mensagem, adotar medidas que parecessem benéficas, ao ocupar o poder, criar um histórico heróico e carismático, para poder, paralelamente, fazer o que bem quisesse. A ideologia mesmo, nenhuma importância tinha, já que pouquíssimos entendiam disso.

Vi e convivi com políticos de direita, esquerda e centro fazendo, exatamente, isso.

Hoje, a batalha ideológica esgrime críticas e acusações, exibindo incongruências, distorcendo fatos, exagerando cálculos, editando vídeos, caricaturando, vendo extremismo inexistente. Tudo isso, apenas para fazer valer a própria visão de justiça social. Porém, nunca houve justiça social em nosso país, principalmente porque quem sempre a defendeu, só se preocupava em assumir e garantir o poder, a qualquer custo, sem se preocupar com o povo.

Todos os presidentes e governadores que tivemos, acertaram algumas coisas, mas também erraram muito, conchavaram muito, roubaram muito, omitiram-se muito, cumpliciaram-se muito, privilegiaram muitos. Nenhum se salvou, e isso pode ser verificado com simples levantamento de atos governamentais e registros de atividades bancárias e mercantis.

Como bem disse Caetano, num tempo em que ainda não era um acomodado no bem bom: só tivemos podres poderes.

Acostumamo-nos a dizer que os ladrões de hoje são piores que os de ontem, mas é preciso ver que são todos iguais, em seu teor básico. Tanto é assim, que em política, basta buscar e todos poderão ver os que hoje brigam, abraçando-se, falando bem um do outro, contando causos de tempos idos e assegurando, com firmeza, que o “amigo” (ou amiga) é muito confiável. É claro que há os mais toscos, brutos, dissimulados, espertalhões ou abusados, mas o fulcro, a essência é a mesma, e isso os une, infelizmente, para tudo que não presta.

Num país vizinho, um presidente de esquerda, ex militante, cumpriu seu mandato com regularidade, fez um bom governo (não excelente, mas bom) e saiu agraciado por seu povo, sem um tostão a mais do que quando entrou. Recusou uma aposentadoria milionária, dizendo que só poderia aceitá-la se todos os cidadãos também tivessem direito a algo semelhante. Ainda vive no mesmo sítio, cria suas galinhas e dirige seu fusquinha. Num outro país, também vizinho, o presidente, também de esquerda, está destruindo o povo e a nação, bestamente, e acha que está fazendo um excelente trabalho, e nisso é apoiado pelos coidealistas de outros países, pela mídia engajada e por organismos internacionais, compromissados com terríveis objetivos. Não é o único dirigente que mata, destrói, devasta, e é aplaudido. Há diversos que lhe fazem companhia, nestes tempos sombrios. Todos seus crimes aparecem como atitudes meritórias, numa ostensiva inversão de valores.

Os personagens deste momento, vários conheço desde os tempos da mocidade, e posso afirmar que já vi o lado negro do caráter de cada um, mais de uma vez.

Comecei falando de Sampa e já discorro sobre gente que não presta e engana. Enfim . . .

São Paulo representa o oposto disso. Seu gigantismo, violência e sujeira, não consegue enganar ninguém, mas apesar disso, muitos desenvolvem afeto pela urbe, assim como vários visitantes engalham em suas opções atrativas, tomando cuidado, porém, para não soçobrar.

Esse mesmo cuidado devemos ter para com aqueles a quem defendemos ou atacamos,

Vale ter cautela, evitar extremismos, olhar desapaixonadamente, evitar interpretações, evitar comparações, principalmente, porque não se pode optar pelo menos pior (isso não existe). Se hoje temos gente ruim, agindo mal, os que lhes antecederam também agiram assim, mesmo que queiramos achar diferenças. Em meio a esses sempre há como encontrar alguém ou alguns com boa índole e bons objetivos. Defender ideologia é incongruente. Defendamos projetos, atitudes, iniciativas, que beneficiem a população, venham de onde vierem.

Nossa sociedade mundial (não só a nacional) está desestruturada, despersonalizada, sem meta, sem rumo, sem valores em que se apoiar, sem cultura, sem atenção ou cuidados básicos, sem incentivo ou suporte cidadão. Nenhuma ideologia poderá por ordem em todo esse caos. O único caminho viável é o senso comum, a cidadania comum solidária.

Enquanto defendermos rótulos, antagonismos ideológicos, interesses políticos, inexistirá condição suficiente para encaminhar soluções adequadas. Todos os projetos sociais esbarram, após algum tempo, na inércia mental do cidadão, que não entende nada e tenta achar um jeito de tirar vantagem, sempre. Alguns governos recentes inventaram meios de agradar e bancar a situação dos mais pobres, apenas para conseguir apoio, e isso comprometeu uma iniciativa eficaz e duradoura, apenas para aplicar algo populista e eleitoreiro. Se, ao invés de tentar agradar e tirar vantagem, houvesse real intenção de resolução, setores de atendimento social estariam unidos numa frente comum de alavancagem cidadã, que jamais poderia ser encarada como eleitoral, porque tomaria muito mais tempo, para poder produzir os primeiros resultados. Nenhum governo podre, como todos os que tivemos, quis isso, assim como não quiseram investir em saneamento e infraestrutura, porque são obras invisíveis aos olhos dos eleitores, demoradas, que não rendem votos.

As poucas ocasiões em que tivemos alguma melhoria, não veio de nossos governantes, mas da pujança da economia mundial. Durante os primeiros anos, desde 2000, o mundo todo prosperou, até chegar o fatídico 2008, quando tudo começou a desmoronar, e, casualmente, ou coincidentemente (vejam só), nosso país também desmoronou. Fácil entender, mesmo para quem não entende de economia, que só pegamos garupa na prosperidade dos outros. Até o Haiti, país totalmente falido, teve prosperidade maior que o Brasil, na época.

Mesmo assim, quem governava à época, enche o peito e diz que tem o crédito de tudo de bom que foi conseguido. Discípulo ferrenho de Maquiavel.

Antes desse, tivemos um que se jactou de ter dominado a inflação, ao produzir nova moeda e sistema de equilíbrio monetário. O único porém, é que a coisa toda foi desenvolvida por uma equipe (muito competente), que ficou quase no anonimato, para que esse pretenso herói se tornasse governante do país. Como se pode ver, a patifaria é extensa e comum.

Vejo pessoas amigas se envolvendo na gritaria histérica que predomina em todo o país, e lamento que percam tutano e tempo com quem não vale o que evacua. Estamos caminhando, cada vez mais, para a divisão, o confronto, a intolerância, que pode desaguar em algo mais sangrento ou devastador.

O que sugiro a todos é que paremos, meditemos, reflitamos, baixemos a bola e não aceitemos tudo que aí está, mas também não o que já se foi. Conversemos, busquemos alternativas, sem conflitos ideológicos, sem rótulos inúteis ou outro viés social. Simplesmente, tentemos encontrar respostas a cada problema, juntos, unidos em torno do que é necessário, pontualmente. Esqueçamos partidos, programas, promessas. Lidemos com situações próximas. Cada pequena solução construirá o todo que precisamos. Isso, porém, leva tempo.

Cada manifestação, faixa, cada perda de tempo com política crua, pode representar prejuízo para solucionar problema regional, pequeno, mas importante. Cada centavo poupado, cada minuto dedicado, cada atenção gentil e desapegada, pode mudar muita coisa. A ferramenta principal é a boa vontade, sem esperar retorno ou ajuda.

A política, transformada, no dia a dia, em politicagem, é o real problema, nunca uma solução. Em nossas mentes e mãos está a resposta a tudo. Podemos responder ou tentar justificar, já que temos o livre arbítrio. Até agora preferimos a segunda opção.

Sejamos missionários de nós mesmos e do próximo.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 25/01/2018
Reeditado em 25/01/2021
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