MISTÉRIOS NUM RELÓGIO DE PULSO À CORDA

Sempre gostei de relógio de pulso à corda.

O meu pai, Gerd Silbiger Z'L, mais conhecido por Geraldo, teve um tio, Roman Luftig Z'L que tinha um muito bonito.

O Z'L é uma abreviatura das palavras em hebraico zicaron lebrachá (se fala lebrarrá) que significam bendita a sua memória, sempre colocadas ao lado do nome de pessoa falecida.

Voltando à crônica, eu admirava e cobiçava o relógio do meu tio.

Quando faleceu, meu pai deu pra mim.

Passei a usá-lo cheio de orgulho e satisfação.

Ficava pensando nas vezes em que ele tinha visto as horas no relógio à corda.

O que passara pela sua cabeça naqueles momentos. Se estava ansioso, assustado, emocionado, preocupado, feliz, intrigado, animado ou na pior.

Achava que cada olhada no relógio deixaria uma espécie de rastro que só poderia ser percebido por quem, de direito, passaria a colocá-lo no pulso.

Confesso que algumas sensações brotavam e que eu tentava interpretar pra entrar "em sintonia" com as que meu tio teve.

Essa espécie de jogo durou alguns anos e depois, gradativamente, foram sumindo, como se já tivessem cumprido sua missão e, portanto, não tinham mais razão de perdurar.

Comprei sábado um relógio à corda na feirinha do Centro de Convivência, aqui em Campinas.

Funciona perfeitamente, apesar dos seus bons anos de estrada.

Estou tentando entrar na frequência do dono anterior, imaginando quem foi e o que passava na sua cabeça e coração quando olhava esse belo exemplar de Lanco suíço.

Cada vez que dou corda, tento me conectar espiritualmente com quem o colocava no pulso pra tentar capturar um pouco dos seus sentimentos e verdades.

Pode ser que essa sintonia demore pra acontecer: dias, meses, anos, a vida toda, quem sabe.

Espero que um dia, quando eu morrer, que meu filho primogênito David, tão apegado às modernidades como todo cara de 21 anos, ganhe o relógio e passe a usá-lo, pois será seu por direito.

Que lembre dessa crônica.

E que tente se conectar com o que seu pai sentia à cada passada de olhos pra ver a hora.

Assim o nosso vínculo vai durar bem mais do que a finitude da vida determina.

E que, sobretudo, não esqueça de colocar as letrinhas Z'L ao lado do meu nome.

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