Calor Abaixo de Zero

Neste meu mirante, olhando sobre as histórias da minha vida, vou recuar aos primeiros dias do mês de Janeiro de 1981.

Na qualidade de instrutor, estava com um grupo de seis agentes da minha força policial em Coruche no Ribatejo, onde faziam o estágio da parte final do seu curso de formação, e, que acabaria em vinte do mesmo mês e ano.

No dia dois à noite, houve um ligeiro beberete por eu ser aniversariante, fazia trinta anos, por sinal começou aí a melhor década da minha vida, porque quando se chega aos "entas", quer se queira quer não a pujança começa a fraquejar e numa aceleração constante à medida que o tempo avança.

Depois de se cantarem os parabéns, de se brindar, do vai acima vai abaixo, volta acima e bota abaixo, o comandante de posto, que estava entre nós pediu-me para o acompanhar ao seu gabinte.

Previa eu que tivesse havido da minha parte ou de algum dos meus instruendos algum excesso, mas como não me tinha apercebido do que quer que fosse, limitei-me a fazer o que faz a grávida, basta esperar para se saber o resultado.

Dentro do gabinete, numa conversa dentro da maior cordialidade, o Primeiro Teixeira, nome por que era conhecido, dento e fora da corporação, disse-me:

- Ferreira, eu sei que você tem um dom especial para lidar com ciganos. Já o conheço, não é a primeira vez que por aqui passa, e, como tal, eu preciso da sua colaboração.

Obviamente que não me ia esquivar fosse ao que fosse, limitei-me a afirmar:

- Meu Primeiro, disponha...

- Ferreira, está aqui um ofício que eu recebi da Câmara Municial, em que determina o levantamento de um acampamento de ciganos, que está há mais de uma semana, ali num areal junto do rio Sorraia. Por jsso eu quero que você amanhã, chegue lá com quatro homens meus e faça retirar os ciganos dali. A base legal para esta diligência, é esta postura municipal.

A conversa continuou, falou-se um pouco da legitimidade da postura, pois tinha já a data de 1947, acertaram-se os detalhes e para a parte final ficou a marcação da hora a que a operação tinha início, onde eu solicitei a sua opinião, uma vez que conhecia melhor o terreno e os nómadas do que eu, e, disse-me:

- Ferreira...em meu entender, a melhor hora é às oito da manhã. Os ciganos ainda lá estão todos, torna-se mais fácil fazê-los sair. Mais tarde pode ser complicado, pois se só lá estiverem as mulherese e os garotos, já não pode efectuar o serviço.

- Com certeza! Respondi eu.

Ficámos por ali, e depedimo-nos.

No dia seguinte às sete horas e cinquenta e cinco minutos, entro no areal do acampamento juntamente com os quatro homens, devidamente equipados, os cinco claro! Tendo como transporte um velho Land Rover. Uma geada polar cobria toda aquela região, a temperatura segundo os meus cálculos não andaria muito distante dos dois graus negativos. Embora agasalhados todos tremiamos com o frio, sentados numa viatura sem aquecimento.

À medida que nos aproximávamos do acampamento melhor viamos a situação. Jactos de fumo branco saíam das narinas das bestas que ali estavam presas, o ar expirado turvava em contacto com o frio, e, rolando lentamente, bem perto da tenda viamos no seu interior através de um plástico transparente, que servia de toldo, umas nádegas em movimento constante em vaivém vertical. Todos sabiamos o que estava a acontecer, eu ordenei que houvesse silêncio, porque aquela tarefa não podia durar horas, tendo ali posto em prática dois princípios meus. Um deles, o mais pessoal, nestas circunstâncias nunca empato seja quem for. O outro mais moralista, ver não é pecado. Só se está contra a lei de Deus se espreitar.

O que estavamos a ver acabou, no melhor penso eu, e, já depois de o corpo estar debaixo das mantas, eu saí e puxei pela voz:

- Pessoal! Vamos levantar.. são oito horas toda a gente a pé!

Em poucas fracções de segundo, o cigano que acabara de sair do coito, levanta o plástico, com a cabeça junto ao solo, um tanto espantado, limitou-se a balbuciar:

- Es...espe...ére...!

Gerou-se um grande movimento dentro da tenda e talvez uns cinco minutos depois, já tudo estava em movimento. O patriarca do acampamento vem do lado oposto da tenda dirigiu-se a mim, respeitosamente e perguntou-me o que se estava a passar. Comuniquei-lhe tim-tim por tim-tim, o objectivo que me levou ali. Com alguns queixumes acabou por acatar a ordem.

Começam a aparelhar os burros a carregar as carroças e meia hora depois estavam de abalada, para bivacarem noutro local, certamente não muito longe dali.

Durante a meia hora, houve conversa entre mim e os ciganos bastante cordial. Fiquei ali a saber que dentro da tenda, não era tudo ao monte.

A sua bagagem malas, sacos e outra bagagem, que formam a tralha, como eles dizem, é disposta em duas diagonais de modo a haver uma certa privacidade entre eles, porque deitados nas camas, entre a tralha e os toldos laterais, não se vêem uns aos outros.

O cigano que tinha cumprido o seu dever de marido, sentia-se um pouco envergonhado, talvez se julgasse na pele de quem cometeu um crime. Pouco falou, só dei conta que apressadamente disse à mulher:

- Trata da canalha...!

O patriarca, bastante conversador, também se apercebeu do que tinha acontecido na tenda à nossa chegada. Penso eu que terá ouvido algo

próprio daqueles momentos, e, que também estaria ciente de que nós teriamos dado conta.

Já na ponta final, como que em jeito de desculpa, o ancião fez-me esta pergunta:

- O senhor empregado sabe porque é que os ciganos fazem muitos filhos?

- Sei! Porque são fáceis de fazer...!

Sem deixar interromper a minha conversa baseei-me, numa publicidade

muito badalada naquele tempo, em matéria de sanidade, que era o planeamento familiar, e, fui acrescentando:

- De hoje em dia o problema é evitá-los. O senhor já ouviu falar no planeamento familiar?

- Não senhor empregado! Não sei o que isso é. Mas deve ser só para quem não tem que fazer, que o cigano não tem tempo para essas coisas.

A conversa ia a ficar por ali, mas eu não deixei e questionei:

- Mas diga lá a sua versão! Ainda me não disse porque é que os ciganos têm muitos filhos?

- Então senhor empregado...! Já viu o que é dormir na rua com um frio destes!

Evidentemente que me ri, e concluí que era o modo mais económico para ter aquecimento numa tenda a temperaturas negativas.

Zé Albano
Enviado por Zé Albano em 26/08/2007
Reeditado em 27/08/2007
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