A epifania éramos nós

Aquele futuro me balançara.

Não, não tínhamos sido nada. Decidimos, certos, que não teríamos futuro e o que pensávamos ser amor transfigurou-se em uma vaga lembrança que ecoava em nossas mentes. De repente, 1 ano havia se passado e éramos outros, ainda que, quando nossos olhares encontravam-se, esquecíamos de todos os meses que nos separaram até ali.

Alguns quilos a mais não calavam seu charme, tampouco a eloquência particular com que pronunciava cada palavra, meticulosamente pensada. Seu olhar era o mesmo, magnético, como um flautista que busca, em meio às multidões, uma serpente digna de sua atração. Estava cansado e crescera. Estava claro que crescera.

Não sabia o que meu amigo vivera nesses meses em que perdemos o contato, não sabia se dormia bem ou se continuava se exercitando. Não sabia, ao menos, se havia se apaixonado ou se existia alguma mulher em sua vida e, por um segundo, envergonhei-me por não procurá-lo. Como pude? Meu coração encolhia à medida que percebia que, após tanto nos conhecermos, nos desconhecemos. Nem o cheiro de cigarro, que lhe era tão característico, pareceu-me familiar. O cheiro que tanto me incitava curiosidade era, de repente, um cheiro qualquer de cigarro, desses tantos que sentimos por aí. Sabia, no mais profundo de mim, que o amara. Amei-o como uma adolescente que ama pela primeira vez, como quem descobre um sentimento perdido no fundo de si e nomeia-o com o frágil vocabulário infantil.

Amei-o porque nunca nos amamos e desamei-o com a mesma intensidade. Revirei-me toda e o esqueci por completo e, quando o vi ali, no local que, de tanto frequentar já considero meu, certifiquei-me de que o desamara, em algum momento de muitos meses atrás. Na minha frente, com os olhos cravados nos meus, estava um estranho que me despertara para o mundo. Um estranho que, à parte todas as despedidas, deu início à minha mais sincera metamorfose. Naquele instante, entretanto, em que conversávamos, eu já estava metamorfoseada e não seria hipnotizada pelas canções que ele soprava na música de sua voz. Essa serpente, antes tão menina, já não se encantaria mais, ela, até mesmo, amava um outro rapaz.

Quando pensei ter descoberto a epifania daquele encontro, o flautista lançou sua última carta: ele havia escrito um conto sobre nós, sobre nossas conversas, sobre qualquer coisa entre nossas palavras que o inspirara. Percebi que não sabia nada. A epifania não era sobre desamores ou, tampouco, sobre futuros não realizados. A epifania éramos nós. Como, de repente, tornavamo-nos poesia no imaginário um do outro e encenávamos um capítulo de um livro ainda não escrito. Éramos tudo aquilo que não fomos e, à parte todos os desencontros, tínhamos a certeza de que, um dia, existimos. Estaria, pra sempre, descrita por suas palavras, num canto qualquer da memória de meu amigo.

Éramos um amor que terminara em prosa. Éramos, por fim, esboços um do outro.

Fernanda Marinho Antunes
Enviado por Fernanda Marinho Antunes em 10/02/2018
Reeditado em 11/02/2018
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