Dona Q.J. (crônica)

Desde a morte da Velhinha de Taubaté, ninguém mais acreditava no governo. #SQN

Em algum lugar destes pagos, de cujo nome não quero me lembrar, há não muito tempo vivia uma senhora, da família tradicional, bela, recatada e do lar. Ela leu muitos santinhos de candidatos políticos, folders de propaganda gerencialista, soluções mágicas para a gestão pública, reportagens pouco imparciais da imprensa... Ficou encantada por um gringo, grande administrador público, que fez um trabalho ótimo na Serra, que não se comprometeu com ideologias de partidos, que não fez promessas de campanha. Nossa não mui engenhosa Dona Alfonsa Q.J. logo virou cabo eleitoral, pronta a defender seu Dulcineio.

Depois de acompanhar eufórica a vitória de seu eleito, refletiu que, para melhor servir o seu Estado e o seu eleito da maneira mais digna, deveria participar do seu governo. Em alguns dias e alguns telefonemas, foi nomeada ASsessora COmissionada NEcessária. Masáa! Até catequisou a vizinha Sancha para ajudá-la no trabalho pelo valoroso Dulcineio.

Nos primeiros dias de trabalho, depararam-se com Inimigos: gente barulhenta, com sinetas, que gritavam contra Dulcineio, acusavam falcatruas em contratos de energia eólica. Além das faixas, apitos, sinetas, tinham totens de cataventos gigantes e bonecos-de-posto.

“Dulcineio, mãos-de-tesouras! Parcelou o salário das professoras!” “Tu náo é bobo! Aumentou o imposto, e quem paga é o povo!” “Aumentou o próprio salário! E o nosso piso?”

Dona Q.J. avançou com o dedo e o verbo em riste contra as sinetas e os cataventos.

- Piso é na loja de ferragem! O sacrifício de cada um é o bem de todos! Viva Dulcineio!

Uma pá dos cataventos enganchou na sua blusa, e rasgou um boneco-de-posto. A pressão do ar explodido lançou Dona Q.J. mais de um metro longe. Caída, ainda ouvia o coro.

“Quer vender nossas estatais para os comparsas! Quer extinguir fundações, demitir concursados, contratar CCs, não combate isenções fiscais suspeitas de grandes empresas!”

A boa Sancha veio resgatá-la. Mas a cavalaria avançou, e as duas foram pisoteadas.

Quando dona Alfonsa acordou, horas depois, estava em casa, rodeada de parentes.

- Tia, a senhora não pode sair por aí enfrentando as pessoas pelo governador!

- Bobagem! Devo lutar mais! Dulcineio faz tudo pelo equilíbrio financeiro do Estado!

Os familiares decidiram o que era o melhor a fazer. Queimaram toda a sua coleção de pôsteres, santinhos, recortes e notícias sobre Dulcineio. E cuidaram para não lhe trazer notícias do governo durante toda a sua convalescença, para poupar seus frágeis nervos.

Tempos depois, quando se recuperou, pediu notícias à fiel Sancha. Soube então que estatais foram vendidas, concursados foram demitidos, e até o 13o. foi parcelado. Mas certos privilégios, cargos e isenções seguiram protegidos. O choque e o desapontamento dessas descobertas foram demais para seu coração. Dona Q.J. morreu como uma triste figura.