Atravessou meu Carnaval

No Caranguejo de Copacabana, a culinária é famosa. Todo mundo conhece mas eu nunca tinha ouvido falar.

Não sou de botecos nem de cerveja mas no meio do caminho havia um bloco de foliões. Portanto, para fugir do tumulto escolhi fazer um desvio da rota que habitualmente me leva para casa. Ainda resgatei dois amigos no mar de bêbados que ocupava a Avenida Vieira Souto, e seguimos por Copa para chegar à Lagoa.

Famintos e em fuga, decidimos por um pit stop no tal Caranguejo.

Pastéis de camarão, salada de palmito e anéis de lula. Petiscos semi saudáveis, por conta da fritura e do sofrimento dos bichos. É que eu não costumava me condoer da sina dos camarões e lulas servidos à mesa. Palmitos mesmo ceifados, ocupam um lugar de correção alimentar, ao menos se devidamente replantados e no tempo de colheita respeitados.

Acontece que a minha fome privilegia o olfato e o paladar, e abrevia a consciência do caminho que o alimento percorreu do habitat natural ao prato.

Voltando ao bar lotado.

O ânimo era o de 6a feira que antecede o sábado de carnaval. O garçom era um senhor grisalho de olhos azuis, tão distinto que acaso eu bebesse, teria elogiado o olhar como quem pretende seduzir o Frank Sinatra.

Um dos amigos me julgou quando me dirigi ao garçom para dizer como ele tinha olhos incríveis. O fiz de pura surpresa. A admiração escapou antes de eu parar e pensar. E ademais o moço deve estar careca de escutar o mesmo elogio. Quem de olhos claros não vive a ouvir o mesmo? Diabos de cultura onde toda fala gentil ou gracejo é considerado cantada...

Mas enfim, o papo estava ótimo, os petiscos dignos da minha estada no recinto, o ar condicionado um oásis no meio do clima tropical-abafado-suarento da rua.

Eis que no meio da conversa meu amigo arregala os olhos e cola as costas no encosto da cadeira.

- Um bicho!

Antes de me virar pra ver imaginei um rato já desaparecido sob as mesas...

A porta da cozinha do Caranguejo tem um vão de um palmo de altura entre a base e o chão.

Paralisado tanto quanto o meu amigo, estava no canto do salão, um parrudo caranguejão. Em fração de segundos todo o público ao redor percebeu e o agito geral fez o bicho se apavorar - mais do que qualquer um dos que estavam ali, provavelmente para jantar as patinhas de algum irmão ou primo dele...

Os caranguejos são comprados vivos. E seguem vivos no cárcere até o boteco.

De olhinhos esbugalhados e patas abertas como num pedido de clemência - ainda que armado com pinças fortes e assustadoras - um simples crustáceo cascudo, mesmo parrudo, não é páreo para os chutes de um ser desumano.

O bicho apavorado ainda correu de lado mas ficou encurralado entre a porta do banheiro fechada e o vão da entrada da cozinha.

Não houve saída pra ele, coitado. Nem se o banheiro estivesse aberto, e a tampa do vaso sanitário idem. Eu, carangueja, e teria me ocorrido de escapar pelo mesmo caminho da descarga da privada. O único atalho possível do asfalto para o mar.

Mas que nada, ideia fracassada, sobretudo por estar na minha cabeça e não na achatada compleição cerebral da subcarapaça do animal.

E no mesmo ímpeto com o qual elogiei o azul dos olhos do atendente, saiu um quase berro:

- NÃO MATA ELE!

Fui esclarecida que os caranguejos volta e meia escapam. Fogem do escaldamento na panela, porque certamente intuem seu derradeiro destino, e são recapturados passeando do outro lado da rua, ou nos estabelecimentos vizinhos. Esse relato meio romanceado não foi convincente. Nunca vi um caranguejo atravessando a Rua Barata Ribeiro.

Meu gogó ficou atravessado por um seco de solidariedade que explico como um provável atavismo. Minha mãe era bióloga marinha. Cresci convivendo com seres marinhos. Aplísias, holotúrias, cavalos marinhos, tatuís, águas-vivas, polvos, actínias, paguros e uma infinidade de peixes e mamíferos dos oceanos e praias. Tivemos um pinguim de estimação, resgatado meio desfalecido na praia do Recreio dos Bandeirantes. Foi batizado de Feodor Kaganovski porque não se restringia ao jardim e laguinho da nossa casa para as suas necessidades. Evacuava sem cerimônia em todos os ambientes. Terminou a vida no Zoo.

Naquela 6a feira resolvi que não comeria mais bichos.

A carinha do caranguejo em pânico está gravada na minha visão. As patas em forma de abraço pediram um socorro que eu não me movi para atender. Mas me comovi. O Carnaval já passou mas ainda sonho com o caranguejo em fuga. Talvez devesse ter acompanhado os desfiles das escolas. Um colorido que embaralhasse a memória.

Preciso confessar que ainda aconteceu um risoto de camarão depois desse episódio, nesses mesmos dias momescos. Mas não pareciam frescos. Talvez tivessem sido apenas congelados.

Hoje, 4a feira de Cinzas, salvei duas formigas. Tirei da pia da cozinha e as coloquei no parapeito da janela.

Sou uma pessoa fraca. Dividida entre a fome, o esquecimento, a bondade, e o amor pelos bichos.

Digerindo contradições, sigo um dia de cada vez.

Feliz 2018 a todos.