Abraços sinceros para a Ir. Laurina.

Conheci essa senhorinha, a Ir. Laurina, nos últimos suspiros do século XX. Uma colega e, depois, uma amiga extraordinária numa época em que fizemos um curso de especialização em Acupuntura Sistêmica.

Uma graça. Na sua humildade tipicamente franciscana, ela ficava, na sala de aula, sentadinha ao lado de uma outra freira. Risonha, esbanjando simpatia, sempre pronta para o trabalho.

Vinda do interior de Santa e Bela Catarina, já havia morado em vários lugares. Um trabalho primoroso com os mais simples, sempre na área da saúde. E lá estava a Ir. Laurina fazendo partos, acompanhando mãezinhas humildes, orientando pacientemente.

Jamais vira tanto empenho pela vida, mas, vez ou outra, me contava alguma aberração. Como numa missa, quando atuava no Acre. Um cidadão, não gostando do sermão, se levantou e atirou no padre assim que este deu as costas para o rebanho.

Senhora de pouco estudo teórico, muitas vezes falou em desistir do curso, dada a dificuldade no entendimento da Medicina Tradicional Chinesa. Insistimos para que continuasse. Eu mesma me coloquei à disposição para alguma ajuda nos trabalhos.

Toda a turma tinha um imenso respeito por ela. Brincávamos na hora do intervalo, e ela, sempre presente, tinha um sorriso bom e compreensivo.

Num dia de curso, na parada para o chá, uma colega me perguntou, curiosa: por que o chá da Irmã está com espuma? Realmente eu não sabia. Fomos conversar com ela e descobrimos que alguém lhe havia dado cerveja bem geladinha enquanto todas nós amargávamos um chá de erva doce. Foi uma farra só...

Fizemos estágio numa cidade linda, pacata, macia, encantadora, chamada Santo Amaro da Imperatriz, na grande Florianópolis. Quando atravessávamos a rua, os carros paravam para lhe dar passagem. Estava na cara que a Ir. Laurina era freira. Ela exalava bondade e compaixão. E humor.

Numa das conversas ela me confidenciou uma experiência delicada que havia passado na Bahia.

Com algumas pessoas, ela resolveu fazer um passeio de barco, mas, o tempo resolveu mudar e veio uma estrondosa tempestade. Dois jovens, aparvalhados, olhando para ela, questionaram se ela era freira. Diante da confirmação, pediram para que ela rezasse. E ela rezou:

“Senhor, se é chegada a nossa hora, aqui estamos”...

“Nãaaaaaaaoooooooo, freira, assim não vale”, gritaram os moleques, perturbados e cheios de decepção.

Algumas vezes dormimos no hospital e, lá pelas 6 da tarde, saíamos para jantar. Numa lanchonete, ela pediu suco de laranja com gelo. O jovem atendente exclamou com indignação: “mas a senhora quer gelo?” Descobri então que freira não pode ter o simples prazer de tomar gelado.

E dias depois eu levei a Ir. Laurina para o pecado da gula: fomos a um buffet de sorvetes. “Vamos, Irmã, a sra. É a minha convidada”. E coloquei bolas enormes de sorvetes variados, calda de chocolate, balinhas... ela fixou extasiada... nunca tinha chegado assim, tão depressa, ao paraíso.

E eu a fiz também pecar numa outra ocasião, apresentando a ela o creme hidratante e ainda dizendo: “passe no rosto, Irmã, é gostoso”. Ela achou ótimo e curtiu muito o perfume de frutas. Num aniversário lhe dei chocolates, o que levou uma outra amiga a me declarar pecadora contumaz e às portas do inferno de Dante.

Provavelmente a única vez que a irmãzinha saboreou um strogonoff de frango foi na minha casa... com que prazer fiz aquela comida...

Perguntava muito do meu filho, se interessava por ele. E sempre ouvindo calmamente as mazelas das almas de nós, mortais.

Vez ou outra eu telefonava para ela, atendendo em Massaranduba, uma cidade distante l70 km de capital. Sempre lidando com seus enfermos, eu ligava pouco, com medo de atrapalhar o seu ofício. Telefonei semana passada. A Irmã Laurina faleceu. Uma sensação estranha me abraçou, uma saudade profunda e a certeza de não termos mais os grandes momentos de harmonia, serenidade e beleza, mas acredito mesmo que ela esteja com São Francisco, o Chico, como ela tão alegre e intimamente dizia.

Fique na paz que a sra. sempre cultivou, minha querida amiga. Que alimente os pássaros, como Chico, ria com ele, bondosamente e com a fortaleza de alma que sempre me cativou.

Fique com São Francisco, Irmã. Na paz dos céus e com o sorriso puro e macio das centenas de crianças que a sra. ajudou a nascer.

E fique comigo, quando das minhas alegrias e angústias, sonhos e desespero, abraços e solidão. Fique comigo também.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 06/03/2018
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