Autor numa sinuca de bico

Rato de biblioteca, leitor voraz de contos de ficção científica, sempre admirei a maneira casual como os grandes autores conseguem inserir fatos fora do comum, extraordinários até, em seus contos.

Isaac Asimov, por exemplo, no conto O cair da noite, ou Nightfall no original, consegue descrever nas entrelinhas um planeta com nove sóis onde a noite acontece a cada 50.000 anos e todos os fatos decorrentes de tal “anormalidade”. O desconhecimento das estrelas, descritas como seres míticos que vem matar as pessoas; o zero absoluto da temperatura; a órbita irregular sem possibilidades de comprovação, do planeta errático; etc; etc.

Outro exemplo:- Orson Scott Card no A noite do exterminador, onde conta de maneira brilhante e sem que seja mencionado claramente, a formação de guerreiros desde o nascimento até sua morte. Nada dito, o leitor vai formando sua opinião até o desfecho final. Phillip K. Dick, no conto “Nós lembraremos para você”, onde o herói adquire lembranças importadas implantadas num laboratório( este conto foi filmado recentemente como Vingador do futuro, Arg!) como se isso fosse a coisa mais normal desse mundo.

Rubens Teixeira Scavone, no “ Homens de silício”, onde enquanto lemos percebemos que seria possível sim, uma civilização extraterrestre ser baseada não no carbono – normal – e sim no silício, sem que isso seja dito de maneira clara. Somente nas entrelinhas.

Ou mais recentemente, já que está na moda por culpa exclusiva do filme do Spielberg “ Inteligência artificial” baseado nos três contos “Superbrinquedos”, Brian Curtiss em I. I. I. falando de colonização intergaláctica e em cinco ou seis páginas( não me recordo de cabeça a número, só sei que curto) narra com frieza a maneira como nós, humanos, exterminamos espécies inteligentes que porventura encontramos no caminho na nova marcha para o Oeste, desta vez interplanetária, sem que se fale nisso uma única vez.

Gostando tanto assim de ficção científica, nada mais lógico que também passasse a resenhar meus próprios contos.

Um, dois, dez contos simples depois, todos claros como a luz da manhã, resolvi que queria alimentar meu ego, fazendo como os grandes mestres: um conto genial, com alguma idéia que desse o que falar sem a explicar claramente. Sabem aqueles contos que a gente lê, pensa, repensa, volta a ler com mais atenção e o pensamento fica assim voando alto e matutando: Como é que o autor conseguiu fazer isso? – e se morde de inveja?

Bem, para isso, primeiro teria de formular a idéia central. E os escrevinhadores de contos sabem muito bem o quanto é doloroso e frustrante esse processo. Às vezes a idéia é boa , mas não tem consistência. Aí damos consistência e se torna banal ou já foi escrita. Um saco!

Depois de noites insones e muitos neurônios queimados a idéia surgiu. Trabalhando um pouco tirei as inconsistências e vou te contar: mesmo depois de analisada friamente, medir os prós e os contras, não é que ficou de tirar o chapéu? Até eu achei e olha que nós , criadores, somos extremamente rigorosos conosco mesmo.

Era assim:

Se herdamos a aparência física – um pouco, pelo menos – de nossos pais, as vezes são os olhos, noutras a cor do cabelo , na maioria a cor da pele, e isso só acontece devido aos genes advindos, porque não se poderia herdar também suas memórias? Memórias são compostas de genes também, ou não ?

Então seria ótimo! Uma espécie de máquina do tempo com passagem para um passado remoto, sem ter de lidar com os paradoxos temporais que os autores desse tipo de ficção repetem “add nauseaun”.

Ficaria assim: criaria uma droga e essa droga ativaria tais genes memóricos de meu bisavô , por exemplo, e num instante coabitando com as minhas próprias, teria lembranças de um passado distante.

“ E aí, babau bibliotecas, compêndios históricos, biografias ?” poderia perguntar algum curioso louco para me ferrar. E complementaria:- Todo mundo teria as lembranças de toda a humanidade num piscar de dedos?

Pensando nessa possibilidade e tentando colocar um pouco de lógica nessa minha teoria bolei o seguinte: supondo que alguém acionasse as lembranças de um seu ascendente da época de Cristo e ele, o ascendente, tivesse vivido na China nessa época? Óbvio que tal pessoa não saberia nada do maior acontecimento religioso da Humanidade e assim nada chegaria ao descendente em questão. Vamos mais longe : meu ascendente era judeu. . . porém morava numa região distante da crucificação? Então é claro que eu não saberia nada . Essa informação não constaria de meu arquivo mental.

Outra pergunta básica para haver um pouco de lógica, e eu faço questão de que haja um mínimo de lógica nos meus escritos, onde encontrar genes específicos de uma determinada época?

Para costurar isso baseei-me na informação pseudo-científica que usamos apenas 15 ou 20% do nosso cérebro.

Então determinei que tais genes ocupariam essas zonas cerebrais não usadas e dispostos como se o nosso cérebro fosse tal qual uma cebola. Foi difícil para mim, já que detesto cebolas, mas. . . Nossas memórias pessoais ocupariam a camada externa da “cebola”. A primeira camada interna, abaixo da nossa, memórias de nossos pais, a outra, nossos avós, a próxima, bisavós e blábláblá, blábláblá! Ato seguinte, um programa de computação para fatiar virtualmente o cérebro nessas camadas memoriais. Quero informações de meu ascendente da época do descobrimento da América? O programa calcularia a média de vida de cada geração e Pimba! Teríamos as lembranças dalgum marujo da Santa Maria, Pinta ou Nina.

Para resolver o problema anterior, aquele de nosso ascendente não ter estado presente no acontecimento desejado, um Instituto.

Instituto Memoriográfico Universal , o I.M.U.

Pessoas seriam recrutadas e pagas, se fosse preciso, suas lembranças gravadas num programa de computação que transformaria as ondas mentais em imagens computadorizadas e disponibilizadas à quem quisesse ou necessitasse saber. Uma biblioteca de memórias gravadas. Legal, né?. Desculpem os termos parecerem demasiado técnicos ou, pior, governamentais demais, mas não se esqueçam, é apenas uma idéia para um conto de ficção científica. Não me culpem, por favor!

Seria mais ou menos assim: seu antecessor ajudou a construir a Muralha da China. Você doa essas lembranças, eu assisto. O meu trabalhou em Machu Pichu. Eu dôo, você assiste.

Haveria nisso tudo uma tremenda inversão de valores no cálculo das memórias. Ao contrário das antiguidades palpáveis, quanto mais antigas as lembranças, menos valor teriam, porque seriam normais em todas as pessoas. Entenderam a lógica?

Existiriam pessoas que nunca seriam relembradas. Moscas brancas, para usar um termo usual em ficção. Aposto que estão embaralhados, sem saber quem poderia ser essas pessoas. Hein? Hein?

Vou dar uma dica: se você não gerar um filho como irá transmitir suas memórias?

Agora ficou fácil?

Pois é!

Jesus não teria suas lembranças.

Alexandre, o Grande: não teríamos suas lembranças.

Oscar Wilde: bem, esse deixa pra lá.

E outra faceta interessante seria que o personagem histórico teria de gerar o descendente depois da façanha! Na suposição de Noé não houver gerado nenhum filho depois do Dilúvio, necas e pitiribas de lembranças. Já era! E admirem a lógica perversa: se o filho nasce antes do fato, como irá receber a memória? Da hora, não é ?

Bem, idéia criada, arestas aparadas, qualquer possibilidade de crítica a respeito de ilogicidades anulada, faltava o quê?

Escrever o conto, ora essa!

Mas, como já disse antes, eu queria inserir casualmente essas informações acima e não detalha-las como fiz. ( preciso corrigir esse defeito de comumente usar o sufixo mente. Olha eu aí de novo!). Fazer meus leitores entenderem minhas idéias sem precisar expor claramente(de novo). Fazer como os mestres da ficção. Inserir nas entrelinhas. . . Fazer o leitor raciocinar sem que eu explique. . . Fazer com que as pessoas admirem minha maneira inteligente de narrar meu conceitos. . . E , principal, um final surpreendente que desse o que pensar .

O primeiro conto batizei de Viagem curta. O protagonista volta tanto nas lembranças que se vê criando o Universo. Finalzão, hein? Acontece que minha mãe é católica fervorosa, dessas que se não está na igreja, ta rezando em casa e bateu pé. Isso é um sacrilégio! Você cometeu um pecado mortal e será castigado! Quando morrer vai pro inferno!

Lógico, rasguei.

Não tanto pela minha mãe, que amo, e sim porque não consegui fazer como queria. Aquele negócio das entrelinhas, de não narrar diretamente, se ser casual sem ser detalhista demais.

Depois escrevi um onde o herói é um cobrador da Máfia que tem sonhos freqüentes com outras vidas. Sonha que está na Grécia antiga. Sonha com os astecas. Procura um padre que afirma com todas as letras que isso são manifestações do demônio. Um médiun garante que são reencarnações passadas. Um neurologista diz que é um aneurisma cerebral. Depois de levar um tiro na cabeça e sobreviver passa a ter essas lembranças mesmo acordado. E ele mesmo formula a teoria que acabei de descrever.

O título era pomposo: “Pesadelos que nem meus piores inimigos merecem.”

Mas, perguntem? Consegui dar aquele toque de casualidade?

Então vieram mais contos. “Os genes da memória”. “Moscas brancas” onde criei um personagem egocêntrico ao extremo que prefere não ter filho algum e chega a se suicidar à deixar suas lembranças para futuros acessos. “O último a sair feche a porta”,onde o protagonista, cansado de carregar tantas lembranças da humanidade, enlouquece , apanha uma nave espacial e some pela Galáxia.

No último, que sequer dei nome, o protagonista rouba lembranças de pessoas pobres e as transfere para ricos entediados e dinheiro a rodo, que preferem memórias novas. Depois mata os roubados para que os novos donos tenham memórias exclusivas. Um herói bem sacana que resume sua filosofia mercantilista numa única frase:- Porque não posso ganhar dinheiro com algo que esses merdas sequer usam?

Como vêem um conto até razoável. Retórica politicamente correta. Dizer algo fazendo o leitor entender o contrário, mas aí veio o xis da questão: e a casualidade? E as entrelinhas tão desejadas? E o brilho ?

(Penso) (Penso) (Penso) (Penso)

Quer saber um negócio ?

Tomei minha decisão final!

Vou rasgar essa idéia de gene memórico, IMU, lembranças herdadas, o escambal em pedacinhos. A partir de hoje só vou escrever contos banais onde o homem encontra a mulher, apaixona-se e vivem felizes para sempre. Deixar dessa frescura de querer ser diferente, de narrar histórias com conteúdo, e tudo o mais.

Afinal de contas o Sidney Sheldon não faz isso direto?

O Paulo Coelho não escreve tudo mastigadinho?

Então. . . aguardem e verão!!!

Nickinho
Enviado por Nickinho em 28/08/2007
Reeditado em 06/09/2007
Código do texto: T627469