Saudades

Meu irmão mais novo, hoje já falecido, aprendeu a pintar carro por conta própria, associou-se a um amigo lanterneiro e passaram a trabalhar juntos. O cliente chegava à oficina e deixava seu veículo avariado; este passava pelo serviço de lanternagem, depois pintura, e no dia combinado era entregue completamente restaurado. Um dia eles foram ao DETRAN acompanhar um leilão de automóveis batidos. Ao final do evento perceberam que poderiam ganhar mais comprando, reformando e revendendo veículos sinistrados, contanto que não houvesse danos na estrutura. Um investimento de baixo custo com grande possibilidade de alto retorno já que não teriam gastos de mão de obra pra fazerem os consertos necessários. Todavia, apesar de barato, nenhum dos dois tinha o capital mínimo para iniciar o novo empreendimento.

Acho que o meu irmão ainda não estava totalmente convencido dos sonhos acalentados pelo seu amigo e planejava fazer um teste antes de se comprometer, desejava tirar a prova dos nove e avaliar se o ganho era realmente o prometido. Chamou-me para conversar e detalhou superficialmente o formato do negócio, depois, vendo uma boa chance de adquirirmos um automóvel usado pagando preço módico, perguntou-me se eu tinha interesse de aproveitar aquela oportunidade. Na ocasião eu andava de moto e estava satisfeito com a minha situação, no entanto aceitei calcularmos todas as despesas e avaliar o resultado. Por fim concordei em realizar o investimento, mais como incentivo a ele do que para atender a uma necessidade própria, entreguei-lhe a quantia solicitada em dinheiro. Os dois voltaram aos leilões e compraram um Volkswagen branco. Depois de recuperado, ficou lindo, um popular seminovo de baixo custo em muito bom estado. Deveríamos vendê-lo, restabelecer o dinheiro empatado e usufruir do lucro, porém, por ainda não termos um quatro rodas, deliberamos ficar com ele e usá-lo para atender as necessidades de casa.

Um dia amanheceu garoando com indício de o transtorno perdurar por várias horas, resolvi sair com o carro para trabalhar. Adorei a experiência. No dia seguinte a chuva se manteve constante, repeti o método. Foram três dias seguidos de céu nublado e precipitação de água a qualquer hora. Enquanto eu encarava o mau tempo confortavelmente acomodado no Gol ano 87, a Yamaha ficava abrigada na garagem disponível para qualquer emergência. Passada essa experiência, inverteu-se a situação. Apropriei-me definitivamente do automóvel e a RX180 ficou livre para o meu irmão usar. Trocávamos eventualmente, quando ele tinha maior necessidade do quatro rodas, até o dia em que a motocicleta foi furtada. Por ter feito a transação do Volkswagen, toda a documentação estava em nome do Alexandre. Isso para mim não fazia a menor diferença, porque a manutenção mecânica e elétrica era permanente e após o pagamento anual do IPVA ele era vistoriado pelo DETRAN, sendo assim, qual o problema do titular no certificado ser o fulano ou o beltrano?

Foi numa sexta-feira de dezembro, ainda no início do mês, creio, quando finalizei meu expediente no centro da cidade. Eu carregava uma lista de compras e precisava encontrar um lugar para deixar o Gol. Os locais de estacionamento no Centro do Rio, apesar de cobrarem caro demais estão sempre lotados, dificilmente a gente consegue entrar em um deles depois de determinado horário. Já os guardadores de rua, estes não me agradam, não me conformo deles fazerem de um local público um estabelecimento de trabalho. Passam o dia inteiro sem fazer nada, e quando não estão conversando, danam-se a correr atrás dos donos de automóveis para cobrar-lhes algum dinheiro alegando que tomarão conta dos carros. Que tomar conta, que nada! Bem, estacionei o meu entre outros numa rua estreita, de mão única, sem guardador por perto. Era uma via secundária por onde os veículos pouco trafegam. O espaço livre que eu encontrei ficava ao lado de uma barbearia. Muito por acaso o dono da empresa vem a ser tio de um amigo, meu vizinho, na rua onde moro. O caro senhor, naquele momento, estava em pé na porta da sua loja e me viu chegar e estacionar. Quando passei caminhando a sua frente, nos cumprimentamos. Disse-lhe ainda: - Com essa onda exagerada de roubo de automóveis, sinto-me até mais seguro por deixar o meu aqui ao seu lado. Ele respondeu: - Não há de acontecer nada. Vai tranquilo. E fui mesmo.

Mais tarde, quando retornei com mãos e braços ocupados segurando bolsas e embrulhos, logo me dei conta, ao dobrar a esquina, que o meu popular seminovo havia sumido junto com os demais. Juro! Não havia um único veículo à vista onde antes sequer caberia uma bicicleta. O susto de ter um bem furtado deixa qualquer um muito abalado, o coração dispara. Olhei para as lojas com as portas arriadas e a sensação de impotência aumentou o meu abatimento. O comércio local já estava fechado à exceção de um bar, justamente aonde eu fui procurar informação. E o comerciante esclareceu o motivo da rua estar livre daquele jeito, ele disse: - Mais cedo houve uma grande operação da Prefeitura, multaram e rebocaram todas as viaturas paradas em local proibido, tanto aqui quanto nas ruas adjacentes. Agradeci a informação e saí do buteco pensando com meus botões: - Ah, então foram eles que desocuparam geral, os agentes da Prefeitura! Para quem imaginava ter sofrido um furto, eu disse afinal, de mim para comigo mesmo: - Menos mal! Mais calmo e refletindo com mais propriedade lembrei-me do quanto eu estava ansioso para encontrar um lugar vazio onde pudesse deixar o Gol. Estressado eu não procurei saber se, naquela rua, era permitido estacionar. Reconheci o meu erro; em contrapartida, devo confessar, na hora que eu cheguei havia tanta viatura enfileirada naquele trecho que nem raciocinei, automaticamente acreditei que o local tivesse sido liberado pros carros; e fiquei mesmo satisfeito de ter encontrado um espaço livre, prova disso foi que rapidamente manobrei para ocupar a vaga. Consciente de ter tratado a lei com indiferença, reconheci a importância e conveniência da multa para evitar repetir o mal feito. Voltei para casa de trem. Durante a viagem soube de um passageiro sentado ao meu lado que todo veículo rebocado no Centro era levado pra Cidade Nova e deixado num terreno particular contratado pela Prefeitura. Para recuperar o meu, o recomendado era eu visitar o local no dia seguinte e confirmar que ele realmente estava sob a custódia do Poder Público. Deveria então pagar uma taxa de estacionamento, que não é barata, pelo contrário, é escorchante e diária, motivo mais do que suficiente para eu me desobrigar daquele ônus o quanto antes, e pagar a multa por ter cometido uma infração grave. Sobreveio um porém, o proprietário é o único que tem permissão para retirar o bem móvel do pátio. Por essa eu não esperava.

O Alexandre não criou dificuldade e já na manhã do dia seguinte, logo cedo, dirigíamos o Saveiro que pegamos emprestado do Aloizio, nosso outro irmão, rumo ao centro da cidade. Dezembro é um mês quente no Rio de Janeiro, os termômetros atingem os 40 graus com muita facilidade, por isso o traje do carioca comumente é muito leve, normalmente uma camisa de malha, bermuda e tênis. E foi vestido exatamente desse jeito que chegamos ao Pátio da Prefeitura. Com a apresentação do DUT eles logo confirmaram a guarda do nosso Volkswagen e imediatamente recebemos as guias para pagamento: taxa de estacionamento, serviço de reboque e mais a multa pela infração. Somente com a exibição dos comprovantes devidamente pagos era possível retirá-lo do local. Nessa ocasião ainda não se efetuava pagamento através do código de barras e somente os bancos tinham autorização para quitarem as contas de toda natureza. Mas o setor bancário não trabalha nos fins de semana. Para solucionar o problema e atender a demanda a Prefeitura alugou uma sala num prédio público para que um banco conveniado pudesse oferecer o serviço exclusivamente aos infratores, inclusive aos sábados em expediente normal. Informados seguimos direto para essa filial. Ao chegarmos ao local cruzamos com algumas pessoas que já haviam saldado suas dívidas, aproveitamos para pedir ajuda a uma delas. O senhor que nos auxiliou esclareceu tudo o que precisávamos saber, e disse mais: corroborou que só o proprietário no documento tinha acesso ao banco; que pagamentos diversos, do tipo: conta de luz, telefone... os caixas rejeitavam; que a agência estava realmente lotada; e quanto aos homens, estes só recebiam autorização para adentrarem no prédio se estivessem trajando calça. De short ou bermuda não havia sequer uma conversa. Pois é, deu-nos esse banho de água fria. Nosso bairro fica distante do Centro algo em torno de 30 km, ter que ir até a nossa casa e voltar por causa de uma única peça de roupa não fazia e nem faz o menor sentido.

Olhamos um para o outro e eu perguntei: - Você tem alguma ideia de como resolver isso? A cara de desânimo que meu irmão apresentou dispensou as palavras. - O que você acha de contornarmos o quarteirão para tentarmos obter uma calça emprestada de alguém? insisti. Ele apenas deu de ombros dessa vez. Depois indagou: - Como assim? - Eu não faço a menor ideia! Só acho que não devemos ficar aqui parados, respondi. - É, tem razão, não podemos retornar para casa sem resolver esse problema. Vamos nos mover por aí sim atrás de buscar alguma solução. Faltou entusiasmo, mas eu gostei.

Entramos no Saveiro e saímos guiando pelas ruas vazias, cruzamos com alguns pedestres infelizmente nenhum deles apresentava compleição idêntica a do meu irmão, ou seja, ninguém vestia o tamanho 42. Paramos num buteco e passamos a vista no pessoal diante do balcão, não tivemos coragem de abordar ninguém. Abatidos após a investida frustrada voltamos para a agência a fim de elaborar um plano B. Depois de estacionarmos, um rapaz aparentando ter boa índole atravessou a rua à nossa frente. Eu decidi aventurar a sorte e o chamei: - Amigo, por favor, me concede um minuto da sua atenção. Ele parou de boa fé e aceitou escutar o que eu tinha a dizer. Descrevi-lhe o nosso drama rapidamente e o cara ouviu com paciência, no entanto, quando eu o consultei se aceitava trocar de roupa com o meu irmão - aquele trajaria o short deste e este vestiria a calça daquele -, lamentavelmente e sem demonstrar que ficou ofendido ele se negou a cooperar alegando que o obséquio poderia tomar muito do seu tempo, justamente do que ele não dispunha. Não persisti e calei, simplesmente acatei a sua decisão. Para nossa felicidade, um senhor atarracado que se apresentou como advogado estava atento a nossa conversa com o rapaz desconhecido, e, solidário com a nossa situação, ele disse: - Vocês precisam de uma calça para entrar na agência? Eu tenho uma que posso emprestar. Contornou o carro, abriu o porta-malas do Monza e ergueu lá de dentro uma peça de brim ocre amarelo, excepcionalmente nova, embora suja e completamente amarrotada, úmida, e o pior, fedorenta. - Pode usar esta se quiser, falou estendendo a mão, em seguida acrescentou, nem precisa devolver! O Alexandre recebeu a oferta com indiferença, indolente ele virou e revirou a calça de um lado para o outro, aproximou-a levemente do nariz e por fim, ameaçou joga-la em cima de mim ao mesmo tempo em que soltou esta frase: - Sente o cheiro! Depois, insistente pediu encarecidamente para que eu o tirasse daquela enrascada e vestisse aquela porcaria. O advogado já ia longe, apressado. - Infelizmente não, eu respondi. Além do mais, é o seu nome que consta no certificado e só você tem permissão para entrar no banco, esqueceu? completei penalizado. Descaradamente ele enfiou as pernas naquela imundice e suspendeu por cima da própria roupa. Para não cair puxou pelo cós com uma mão, com a outra ajustou a cintura, aproveitou o cadarço do short e amarrou um amontoado de cós espremido daquela coisa nojenta. Pronto, a calça ficou firme, e ele se tornou a cópia fiel do vagabundo, no filme Vida de Cachorro, do Charlie Chaplin. Nem se importou! Solicitou as guias para pagamento, mais o dinheiro e saiu com passo firme, determinado. Para o meu espanto, passado alguns minutos Alexandre estava de volta com tudo autenticado; e chegou rindo. Com agilidade desfez o nó do cadarço, desatou o amontoado de cós e livrou-se da veste repugnante. - Caraca! Ele exclamou apenas. Abismado, eu perguntei: - O que foi que aconteceu, o banco estava vazio, por que você chegou com ares de riso? Ele então narrou os fatos: - Cara, de fora é possível ver que o espaço nessa agência é minúsculo, eu avaliei que dez ou quinze pessoas lá dentro lotavam aquele cubículo. No que eu abri a porta e entrei alguém imediatamente falou em voz alta: “Que cheiro horrível!” Meu receio era causar alguma confusão. Ignorei o comentário e comecei a contar o número de infratores na minha frente; era doze sem contar comigo, pouco espaço sobrava para mais um. De repente notei que todos estavam inquietos e carrancudos e logo se afastaram devido ao perfume repugnante exalado pela calça. No meio do clarão formado ao meu redor, eu pensei: "Se eu ficar nesta sala por muito tempo essa turma não aguentará o mau cheiro, não demora pra eu ser expulso daqui". Ainda refletia sobre o assunto quando a funcionária no caixa pediu para eu me aproximar e lhe entregar as contas que tinha para pagar, nem ela aguentou a catinga. Ninguém se opôs, pelo contrário, abriram passagem para eu avançar na fila; nem cogitei de argumentar coisa nenhuma. Com a presteza da moça logo recebi os comprovantes pagos e saí sem dar um pio. Quando cheguei do lado de fora só ouvi a galera bradar: - Vai tomar um banho, porco fedorento! Automática, a porta fechou-se à minhas costas; eu, que já vinha vindo embora agradecido, decidi nem olhar para trás. Tive medo de levar uns tabefes, tá pensando o quê! Os caras estavam muito invocados e eu ainda passei a frente de todo mundo. Foi por isso que cheguei rindo, livre do sufoco.

Com os comprovantes autenticados voltamos ao pátio da Prefeitura, apresentamos tudo e tivemos o carro liberado. Eu voltei dirigindo o Gol e o Alexandre trouxe o Saveiro. Saudades do meu irmão.

Dilucas
Enviado por Dilucas em 15/03/2018
Reeditado em 19/12/2023
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