O Nariz dos outros

O Nariz dos outros

Monologo sobre um prefácio

Tem coisas que a gente não sabe como começa. Bom, nem questão de como começa, na verdade é como se pá e de repente era aquilo. Não sei como explicar. Andava sempre de olhos baixos, com medo do chão esburacado, de uma titica de cachorro, de repente meu sapato assim pelos lugares carregando aquele cheiro. É por isso que meus olhos sempre se mantiveram baixos. As pessoas pensam que é baixa autoestima, mas não é não. É medo de pisar em titica de cachorro. Quem anda de cabeça muito erguida pisa em merda, já ouvi isso em ditado popular.

Mas o que interessa é isso que não sei como começou, como se sucedeu assim. Sabe aquela história da náusea, aquela da Clarice Lispector em G.H? Mas é fácil contar quando se usa metáforas. Lispector era inteligente, eu não sou. Quem sou? Estou em elipse de gênero – ah, sim tô ensaiando falar pelo mesmo caminho de quem experimentou a náusea. Pobre de mim! Se fosse uma barata, provaria da sua matéria viva sem nojo, mas sossega, pois também não é titica de cachorro.

Ah, é tão pobre na verdade. Daria uma mera novela de reviravoltas, só que em espiral. Não acaba. Voltamos a diva da náusea, hem. Ela amava vírgulas, e para ela as narrativas, todas, só deviam começar e terminar com vírgulas. Concordo. Não é possível que a aflição tenha fim, pois toda história de uma vida é história de aflição. E não começou a partir daquele parágrafo, pois já tinha um começo antes daquele começo.

Sabe um dia que você grava na memória: um dia que pareceu que nada tinha acontecido. Havia janelas abertas como bocas escancaradas de pasmo para um dia nítido. O chão em que piso é sempre esburacado. Olhe para o chão que você pisa, olhe, e constatará o mesmo. O chão está sempre querendo testar o seu orgulho.

Conheço uma mulher que todos dizem que ela é rica. Só que ela não tem dinheiro. Mas aí você pode pensar, ah, sim ela é rica de outras graças, mas não, ela anda sempre de cabeça erguida. Pisa sempre na titica, só ela que não sente o cheiro da merda do próprio sapato. Os outros vivem de nariz franzido ao que ela aparece. Ela se sente. Pensa que é recalque dos outros, mas não, não, ela vive sapateando na merda, pois não abaixa a cabeça, o nariz sempre em pé. Isso é o tipo de náusea reversa.

Tergiverso por que é difícil chegar a simplicidade do que vou contar. Na verdade, não vou contar aqui. Isso aqui vai ser um prefácio. O que tem a ver a mulher esnobe que conheço com que vou contar? Ah, pelo espiral que vou formar, talvez você identifique. Vai começar com uma virgula, mas não literalmente como na história de Lori e Ulisses; é que vai começar assim de repente, e poderá ser percebido que começou depois de uma vírgula.

Ah, sim, quem lê se perguntará de onde saiu aquilo e de onde começou. Você lê histórias fáceis, eu também, mas elas são tão insossas, que as abandono pelo meio sem coragem para prosseguir. O que almeja ser complicado é fácil, o que deseja ser fácil se torna complicado. É porque já tentei contar esta história de um caminho curto, mas deixei tudo para trás. Apaguei tudo. Fiz tantas experiências, e nenhuma me satisfez. Vivo equivocado, sou mesmo um equívoco, admito. Quando me flagro dando uma gafe, que não são poucas, rio de mim. E vejo do que sou capaz. Um anjo torto me fez. Ando sempre de cabeça baixo, pois tenho medo da merda nos meus sapatos, do cheiro da merda nos meus sapatos franzindo os narizes dos outros.