Pobre dona Clotilde.

Dona Clotilde é minha vizinha há mais de 30 anos. Claro que o nome é fictício, afinal, por uma questão ética, tenho que preservar a integridade da pessoa.

Sempre a dona Clotilde me impressionou. Todos os dias, praticamente em todas as horas, ela se pendura na varanda do seu apartamento à espera dos vizinhos que entram e saem das suas moradas. Chama cada um, sempre, invariavelmente sempre, para contar suas mazelas. E sempre seguido de um gritante “aaaaaiiii. Aaaaaaaaiiiiiiiii”.

O que ela mais gosta de dizer é “tá horrível”, “tá danado”. Odeio o “tá danado”, mas ela não consegue criar uma expressão nova e menos cruel para a sua existência.

Mostra os olhos, um a um, dizendo que não enxerga, mas eu digo; “mas a senhora me viu passar.”

Depois outra: “eu não escuto”... “tenho uma ferida na perna” “tenho que ir ao dentista”.

“Ai, meu Deus, tenho que ir à Caixa para fazer prova de vida. Aaaaaiiiiiiii aaaaaiiiiii”.

Eu bem que penso: “deve ser a última vez que a sra. Vai dar prova de vida, dona Clotilde”... mas neca. No ano seguinte ela está ali, firme, para chamar todo mundo, o jardineiro, a faxineira, o homem que entrega o gás... todo mundo, sem nenhuma exceção.

E não há saco que aguente.

Já fiz duas visitas, pintei um quadrinho com umas flores para ela, porque, se eu levasse um vaso verdadeiro, a planta, torturada pela péssima qualidade de energia, não resistiria um dia.

E nada: lá está a dona Clotilde contando a sua desgraça para todos e todas que passam e não tem dia santo e nem feriado, ela está lá, sempre pronta só para falar o que não presta.

Já perdi a compaixão e chego a correr dela. Quando o meu filho está aqui, ele corre como aloprado e nem olha para os lados. Mas ela chama “Maurício, Maurício... tá danado. Eu to maaaaaallll”. “Eu não durmo a noite toda. AAAAAAAAAIIIIIIIIIIIII”.

Sem contar quando ela, um dia me tirou da cama com um telefonema para dizer que estava mal. Eu estava voltando de um curso numa outra cidade, cansada mesmo. Corri até a casa dela para oferecer ajuda... e ela resolveu não abrir a porta...

Coisas da dona Clotilde...

Mas, na minha precariedade de conhecimento do mundo espiritual, fico pensando: “a dona Clotilde deve ter aprontado poucas e boas no passado para ter a consciência tao pesada e não dormir nunca. São profundas dores de alma e não dores físicas”. E penso mais: “será que, em alguma vida passada, a dona Clotilde era advogada, foi para os Estados Unidos vender o seu país... Ou será que a dona Clotilde usava toga e aproveitava para condenar cristãos que haviam dado visibilidade e importância aos excluídos... será que a dona Clotilde fazia jejum para ferrar com a vida dos outros... ou será que era traíra tentando ganhar importância pela globo daquele tempo. Será que era uma suprema bruxa que tentava roubar direitos de liberdade ou será que gostava de dar golpes a torto e a direito???

Como a senhora não vai saber responder, dona Clotilde, eu aguardarei os desdobramentos para outras vidas... mas não com a senhora. Mas eu quero assistir de camarote.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 09/04/2018
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