O Homem que não tinha mortalhas

Naquele cacimbo rigoroso tinha encontrado tempo nocturno para estudar, ler e para matutar sobre os assuntos actuais, mas, tentei sempre fazer uma leitura desses assuntos pelo ponto de vista de cada um dos autores e imprensa que ía conseguindo ler e, como habitualmente, ía tentado fazer pequenos ensaios teatrais.

Tinha estudado e lido Batkhin, considerado um dos maiores pesquisadores da linguagem humana, grande estudioso da língua, linguagem, polifonia. Escreveu também sobre psicologia, antropologia, história, filosofia, crítica literária, entre outras disciplinas. Infelizmente, não teve tempo de vida para estudar sobre a República de Angola.

Mikhael Batkhin deu-nos uma grande imagem do desconcerto da língua, distorções do pensamento e contradições ideológicas. Uma imagem sobre como os homens podem ser voláteis, sem rumo, quando as adversidades se apresentam de repente.

Apresento-vos por palavras minhas a lição que recolhi naqule cacimbo sobre o mestre Batkhin, Leitura minha, minha responsabilidade..

A cena passa-se no fim do século XIX, arredores de Moscovo.

Sugere Batkhin que imaginemos um homem que decide fechar-se num quarto da sua vivenda e isolar-se de toda a gente.

Usa todo o seu tempo a escrever um livro. Nunca saía por motivo nenhum e nunca recebia ninguém.

Os dias, as semanas vão passando e ele vai, pacientemente, escrevendo o que julgava vir a ser o mais puro e importante livro do mundo.

De facto, o escritor quando terminou a sua obra, fugindo a falsas modéstias, assentiu que havia escrito uma obra extraordinária.

Bastava esperar que o seu editor o visitasse e propagasse a sua obra pelo mundo.

A espera iniciou.

Após algum tempo, apercebeu-se que tinha muito tabaco, vício antigo e necessário para conseguir escrever, mas não tinha papel de cigarro, mortalhas de papel, nem cachimbo ou algo que se parecesse. Somente as folhas brancas, as poucas que sobraram quando acabou o livro.

Assumira anos antes que era viciado em tabaco. Precisava de fumar constantemente, sob pena de convulsões e paranóias nocturnas.

Em poucos dias as folhas brancas acabaram... e o editor teimava em não aparecer.

Assim, visto ser, para ele, absolutamente imprescindível o tabaco para o seu método criativo, para sossegar a urgência de desenhar por símbolos os seus pensamentos, toma a decisão mais difícil da sua vida:

Decide usar a primeira folha manuscrita da sua obra-prima como mortalha. Sentia-se ofegante devido à falta de nicotina, sentia-se perdido ao ver-se a rasgar a página primeira da sua obra-prima. Rasgou-a em pequenos pedaços rectangulares e fumou-a.

A verdade é que não se sentiu tão mal quando usou a segunda página e menos ainda quando usou a terceira... e todas as outras.

Enfim, acabou por fumar toda a sua obra...

Esta pequena alegoria pôs-me a pensar...

Será que a 4 de abril de 2002, Angola começou a escrever uma obra prima, um novo rumo? A escrever dentro do seu cubículo, nessa data, tão solitário que nem a conferência de doadores veio bater à porta?

Tivemos na nossa mão a possibilidade de escrever com honra e talento o nosso futuro, o nosso destino e, sem darmos por isso, quando outras exigências surgiram, cedemos ao vício do dinheiro, ao vício que nos confunde o pensamento, ao vício do amiguismo, da exoberância, da vaidade?

Ou, pior do que isso, fomos ingénuos a tal ponto que outros vieram fumar as páginas do nosso passado e as do nosso futuro na mesma bufarada?

Não conseguimos ver a quantidade de usurpadores do outro lado da porta do nosso quarto, do nosso refúgio?

Durante o dia exigem, estes fumadores, transparência, direitos humanos e solidariedade. À noite, vêm fumar os nossos pergaminhos e trazem-nos tabaco-dinheiro, tabaco-corrupção, tabaco-agressão e, o pior de tudo, tabaco-condescendência.

Ao nosso toque angolano, o dinheiro fica sujo e vil. O deles é limpo, dizem. Não é! Sabemos agora. Basta ver os escândalos financeiros dos países que durante décadas foram os polícias da nossa vida, os inspectores e auditores do nosso dinheiro.

À nossa presença angolana, a razão fica viciada. A moral é deles, afirmam. Não é! Basta ligar a televisão e testemunhar a imoralidade quotidiana fora das fronteiras de Angola. Genocídios, guerras infundadas provocadas pela ganância dos países ditos honestos e éticos.

O nosso petróleo, ao menos e valha-nos isso, dá para fumar mais uns anos e como falamos português, ainda melhor, caso contrário tínhamos de fazer uma adenda à constituição para ficarmos bem na fotografia.

Estes fumadores estrangeiros têm vícios de difícil compreensão.

Às vezes, somente quando há necessidade, vão aos cinzeiros da história recuperar páginas fumadas há muito tempo, como fizeram agora para que a Guiné Equatorial fizesse parte da CPLP.

Outro compromisso pedido aos nossos novos parceiros é a abolição da pena de morte... Certo, certíssimo, maravilhosa bufarada de fumo para os olhos do mundo.

Parece que o petróleo da Guiné Equatorial falou mais alto do que a moral inquestionável de Portugal.

Deviam pedir ao parceiro da NATO, Estados Unidos, para abolirem a pena de morte, e quem devia pedir era a União Europeia, mastro firme da nau da decência e moral no mundo, porque isto da CPLP é mesmo só fumo e o fumo, já se sabe, esvai-se pelo ar.

Acto contínuo, pediam à China para abolir a pena de morte... Que grande bufarada seria!

Porém, nós, os angolanos, somos os autores da nossa obra, mesmo que não seja prima, é nossa a Responsabilidade.

Vamos escrevendo página a página o que supomos verdadeiro, mas devíamos ter mais atenção e verificar quantas páginas já escrevemos, quantas já fumamos e quantas estamos a dar a fumar, porque se, um dia, conseguirmos ver com os nossos olhos como eles, os não-angolanos, nos vêem, ficaremos horrorizados, estupefactos.

Se pudéssemos ver o quanto os incomoda estarmos a escrever o nosso destino com o nosso punho e não com o deles, ah, nesse dia, teríamos que começar novo livro, nova ordem, nova moral, mas sob o risco de nos congelarem o dinheiro nos bancos e de nos bombardearem com drones e misseis israelitas.

É verdade, são nossos amigos enquanto participamos no jogo. Nós sujamos as mãos e eles exibem os anéis.

Afirmo isto porque já li as páginas das histórias dos portugueses, dos ingleses, dos americanos, dos russos, dos franceses e dos israelitas. Páginas negras de escravatura e humilhação, roubo e ataque sem declaração de guerra. Páginas de racismo e segregação.

Todos têm em comum nunca queimarem as páginas da sua própria história, queimando sempre as páginas dos outros.

Têm em comum garantirem que não se acabam nem as suas mortalhas nem o seu tabaco e que ninguém consiga jamais interferir nem nas linhas nem nas folhas dos seus livros.

Vamos ter de esperar pelos próximos capítulos para verificar se Batkhin tinha razão ou não.

Victor Amorim Guerra