Jardins de Monet e a Ponte do Rio Pequeno

Numa ida a São Paulo para visitar a exposição de Monet no MASP, chego com o endereço de um apartamento desocupado no qual eu poderia me hospedar por alguns dias. Como referência, a divisa dos bairros Bonfilhole e Rio Pequeno, rua Giulio Romano. Estava acompanhada de um amigo paulista que não conhecia as imediações.

Estávamos com duas malas e uma sacola que abrigava uma peça de computador. Ao descer do ônibus na rua deserta, num local cercado de morros e travessas que os alcançam, fui alertada para o perigo de assalto. Parece que meu companheiro está com mais medo que eu, foi o que pensei. Havia um sujeito suspeito na rua, e mais ninguém. Aliás, qualquer um naquele momento nos pareceria suspeito. Meu amigo caminhava apressado e se esquecia de olhar as placas com os nomes das ruas e travessas. O que me fez, num repente, deixa-lo à frente e, indiferente ao sujeito suspeito, atravessar a rua para poder decifrar o nome cravado numa placa amassada, pendente de um poste de pouca luz. Luz apenas suficiente para que meus olhos míopes pudessem ler: Rua Giulio Romano. É aqui, gritei.

Chegamos ao apartamento com o intuito de deixarmos as malas e descermos de novo para comer. Achávamos que sem as malas o risco de sermos assaltados diminuiria. Mas não tínhamos visto nenhum local por perto para jantarmos. Ao descer as escadas, pedi sugestão a um vizinho, que também estava saindo. Ele respondeu que àquela hora (23:30) seria perigoso andar a pé por ali, e se prontificou a nos levar de carro a uma pastelaria. E deveríamos tomar um táxi na volta, nos aconselhou o vizinho.

Numa das mesas um grupo de homens tocava violão e cantava. Em outra alguns rapazes falavam de suas experiências com crack. Em frente à pastelaria um outro grupo enrolava um baseado e fumava ali mesmo. No carro, o vizinho havia feito comentários sobre a violência no bairro; sobre o tráfico ali presente e também sobre o latrocínio ocorrido no dia anterior.

O cardápio da pastelaria batizava seus pastéis com nomes pitorescos. Brinquei que escolheria o “Recordação” e meu amigo não me deixou mudar de idéia porque o nome do pastel tinha mais importância que seu sabor. Ele escolheu o “Nobreza”, ambos de camarão, mas com temperos diferentes.

Enquanto devorávamos nossa recordação e nossa nobreza, discutíamos sobre o vizinho que nos deu carona. Meu amigo desconfiava que fosse policial, eu retrucava que parecia estar drogado, pois seu falar era embaraçado. Lembramos que no trajeto, do apartamento à pastelaria (como era o nome da pastelaria?), havíamos visto um carro que parou na esquina de uma das travessas.Um homem desceu do carro e subiu a ladeira, outro ficou esperando. E o vizinho havia dito que o que subiu a ladeira iria ao morro buscar drogas. Ficamos conversando sobre a atitude suspeita do gentil vizinho que nos deu uma carona. Aliás, sem ele não teríamos conhecido a Pastelaria Último Desejo (era este o nome), que nos pareceu bem simpática com seus freqüentadores marginais que faziam um contraste interessante com os nomes dos pastéis no cardápio: Nobreza, Recordação, Aruba, Canadá, Matisse, Salvador Dali, etc. Findos nossos pastéis e a cerveja, ficamos corajosos e, a fim de contrariar o conselho do vizinho, voltamos a pé.

No dia seguinte fomos ao MASP contemplar a exposição de Monet. Seus jardins são de uma nobreza inquestionável. Mas, em minha recordação, a pastelaria da Ponte do Rio Pequeno ainda intriga. Monet não constava no cardápio do Último Desejo.

Rocio Novaes
Enviado por Rocio Novaes em 10/03/2005
Código do texto: T6309