APROXIMA-SE NOSSA SEPARAÇÃO
 
 
Nossa história é digna de registro. Desde o dia em que lhe vi acesa, cheirando a nova, piscando para mim, me apaixonei. Você retribuiu com ternura, sempre esteve e está pronta. Disposta toda, e para tudo.

Estamos juntos há quase oito anos. Bodas de Papoula, onde se celebra a alegria dos bons momentos vividos. Nunca tivemos uma contenda. Nenhum problema. Sempre fomos leais, acessíveis um ao outro.

Deslizamos em asfalto macio nas noites de lua, com faróis alto e a estima mais elevada ainda. Nadamos juntos em rios, eu sei que não era bem isso, mas canais transbordados e ruas cheias de águas das chuvas em nossa cidade, que mais pareciam dilúvios. Resignamo-nos ao nosso destino. Corremos pelas poeiras das estradas dos sertões, sob sol inclemente, ardente nas costas, mas cumprimos nossas missões.

Jamais você rezingou de posições incomodas, de buracos, nem de pedras nem de paus. Sempre se mostrou valente! Uma guerreira. Topa qualquer parada.

Nunca deu galho. Alguns poucos, nada significativo, apenas revisões periódicas. Nossos caminhos, desbravamos unidos, curtindo à beça, sem besteiras ou ciumeiras, só trocando algumas peças.


Arrebatados, ouvimos músicas, nossas preferidas, bem juntinhos um do outro. Sonhos românticos, cheios de expectativas irrealizáveis. Com você ao meu lado, confiante no seu tamanho e nos seis cilindros, sempre tive ilusões de livre-arbítrio e potência. Só nos separamos, em condições transitórias, quando você desejava gasolina e eu queria álcool, parte triste dessa história.

Sei que não cuidei de você como devia, nem me importei quando outros lhe deram banho, lhe alisaram com esponjas cheias de sabão, nem mesmo liguei quando lhe enxaguaram as partes baixas com macios panos e depois massagearam seu corpo com óleos, essências e outros unguentos, sob o pretexto de um tal de polimento.

Hoje, olhando seu odômetro digital reflito sobre sua idade: setenta e sete mil quilômetros, e mais setecentos e setenta e sete metros. Conquanto não abrolhem rugas em sua tez macia, essa quilometragem repleta de setes, mostra que você está idosa. Merece descanso perene.

Penso com melancolia no dia em que nos apartaremos. Este tempo está próximo. Não é a crise dos sete anos, pode ficar certa disso, são as contingências da vida. Já sofri essa dor antes, ao me separar da “pantera negra”, o Ford Mondeo.

São passagens que nos abatem, que não se referem só à morte das pessoas que amamos. Um texto escrito por Judith Viorst em “Perdas Necessárias” explica assim: reflete nossas perdas constantes e nos ensina a alcançar a maturidade e o equilíbrio psicológico.

Você não irá para o desmanche. Você terá, assim creio e me conforto, uma vida mais calma, nas mãos de alguém que não lhe use tanto. Ou será exposta como uma musa, devidamente restaurada como uma bela arte. Voltará a brilhar tal qual lhe vi pela primeira vez e me apaixonei. Já para mim, o momento chegará e não haverá museu.

Aprendi muito nesses últimos anos, inclusive que não sou santo, nem coreano, mas você é. Temos em comum muita fé. Agradeço meu Deus, por minha querida Hyundai Santa Fé, me lembrarei sempre dela, enquanto vida eu tiver.
MARCELO RUSSELL
Enviado por MARCELO RUSSELL em 17/04/2018
Reeditado em 17/04/2018
Código do texto: T6311355
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.