Hipocrisia e Cristo morto.

Reza a lenda que uma mulher, reencarnada há quase seis décadas, fez uma prece costumeira em plena reunião de uma Pastoral. Ela estava indignada, pois, na semana anterior, uma colega havia feito uma oração com o grupo pedindo, indiretamente, a prisão de Lula. Todas rezaram e disseram amém no final.

A mulher quase sexagenária nascera no governo Juscelino e, na infância e parte da juventude vivera a ditadura, trabalhara a favor da democracia, lecionara história com toda a paixão, acreditando piamente que, através do conhecimento dividido, uma nova sociedade haveria de nascer. Ela fez greves, participou de passeatas, trabalhou em jornal de oposição, correu da polícia e ficou muito, mas muito indignada com esse tipo de manifestação de fé.

Na semana seguinte, ela disse em maiúsculo, na hora da oraçao: “EU VOU FAZER A PRECE”.

E rezou por Lula, preso havia quatro dias por uma invenção sobejamente conhecida. O mesmo Lula que havia criado condições para que os mais simples tivessem comida, água, luz e estudo... e, na hora da Ave Maria, pediu para dona Marisa e para dona Lindu, pois esta, com alguma semelhança emocional com Nossa Senhora, viu e está vendo o filho ser humilhado e preso numa solitária. Pior: não tem como proteger o seu rebento.

Foi o ó do borogodó. Uma colega telefonou para a outra, entao ausente, relatando o caso. A ouvinte, por sua vez, ligou indignada para a coordenadora a respeito do ocorrido. Não satisfeita, começou a enviar mensagens bravas via whats... recebeu respostas da sessentona, mas virou um climao.

Num dado momento, a autora do disparate em defender o presidente afirmou: “se acham Lula um ladrão, reze por ele, pois rezar para um ladrao é ser cristao”.

Não teve jeito: fingiram que não entenderam e ficou ruim para todos os lados.

Lendo agora esse texto da também professora e historiadora Gisele Pereira, revivi em profundidade toda a situação, até porque não é lenda não. Eu sou a sexagenária a passar por esse perrengue.

Partilho com vocês o texto publicado na revista Carta Capital do dia 21/03/2018.

Hipocrisia

Os “bons cristãos” também pediriam a crucificação de Jesus

por Gisele Pereira

Nos dias de hoje, eles caluniam Marielle Franco e zombam dos defensores dos direitos humanos.

Jesus fez parte de um movimento revolucionário. Mesmo os mais reacionários e literalistas bíblicos não poderiam negar esta afirmação. Por sua ousadia em contestar as estruturas opressivas religiosas, políticas e econômicas, Jesus foi perseguido, brutalmente torturado, humilhado publicamente e executado.

Para seus opositores, sua morte serviria de exemplo para mulheres e homens que lutavam a seu lado. Seria uma maneira de calar não só Jesus, mas todo o movimento do qual fazia parte. Para isso não bastava matá-lo, era preciso expor seu martírio e violar sua memória.

Em sua cruz colocaram a inscrição: I.N.R.I (Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum), Jesus Nazareno Rei dos Judeus, título que visava depreciar sua história.

De acordo com as narrativas bíblicas, grande parte do público que assistia ao seu martírio clamava pela sua morte. Em Matheus, 27 encontramos: 39 Os que passavam lançavam-lhe insultos, balançando a cabeça.40 e dizendo: “Você que destrói o templo e o reedifica em três dias, salve-se! Desça da cruz se é Filho de Deus!"41 Da mesma forma, os chefes dos sacerdotes, os mestres da lei e os líderes religiosos zombavam dele, 42 dizendo: "Salvou os outros, mas não é capaz de salvar a si mesmo! E é o rei de Israel! Desça agora da cruz, e creremos nele.”

Jesus, em seus momentos finais, teria dito: “Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem”. Hoje, quase dois mil anos depois de seu calvário, muitos dentre seus pretensos seguidores continuam sem saber o que fazem.

E é bem possível que muitos que se dizem cristãos hoje se juntariam àqueles que pediam a crucificação de Jesus. Na verdade, o fazem de diferentes formas. O silêncio complacente frente às injustiças ou a sua prática deliberada por quem afirma seguir Jesus são mais do que incoerências religiosas, são gritos que pedem a sua crucificação novamente.

Ouvimos gritos de calúnia e zombaria de seu martírio, sua morte e sua história. São as mesmas vozes que violentam a memória de Marielle Franco, minimizam a dor e a indignação por sua morte, ou silenciam diante dela.

São os mesmos gritos que exigem hoje a pena de morte, que desqualificam os direitos humanos e seus defensores, que fecham os olhos para as injustiças e iniquidades tornando-se seus cúmplices. São gritos de crucificação.

Marielle foi executada, juntamente com seu motorista Anderson, por, assim como Jesus, defender a vida e a dignidade de seu povo. Foi silenciada por denunciar a violência policial, assim como a violência econômica e racista que priva direitos, encarcera e mata a população negra e empobrecida.

Esses “bons cristãos” seguem sua vida confortável, indiferentes ao sangue e lágrimas derramados. Indiferentes às Marielles, Luanas, Claudias, Andersons e Amarildos, indiferentes ao próprio sofrimento e luta de Cristo.

Ditos cristãos vociferam pelas redes sociais, pelas ruas e pelos meios de comunicação calúnias criminosas que buscam justificar o injustificável, deslegitimar a luta de Marielle e sua existência, minimizar a dor frente à violência hedionda com que foi arrancada de nós e violentar sua memória. São vozes de quem nada entendeu da ação revolucionária de Jesus.

Incapazes de perceber Jesus vivo nos movimentos por transformação social, reverenciam um Cristo morto, enterrado e sufocado em luxuosos templos de pedra. Enquanto isso, condenam mulheres e homens à miséria, à violência, ao encarceramento e à morte.

O simbolismo da ressurreição de Cristo é sua presença enquanto memória viva na luta por libertação. Assim também viverá em nós Marielle. Mataram seu corpo físico, mas não foi suficiente para calar sua voz, arrefecer sua luta que também é nossa. Assim como Jesus, Marielle vive, ressuscitada na memória de quem segue lutando.

Ontem, no dia 20, atos e celebrações interreligiosas pela memória, justiça e verdade, por Marielle e todos/as que tombaram em luta, germinaram por todo o País. Atos carregados de simbolismo e emoção que demonstram que, mesmo dilaceradas diante de seu assassinato, mesmo em luto, Marielle se faz semente em nossa luta. Transformamos nossa dor em adubo, fazendo “Marielle presente, hoje e sempre”.

Em sintonia com este sentimento, queremos fazer memória do Cristo revolucionário que se faz vivo em nós.

Vera Moratta e Gisele Pereira
Enviado por Vera Moratta em 18/04/2018
Reeditado em 22/04/2018
Código do texto: T6312552
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