Assombrações

Acreditava-se nas coisas mais absurdas. Havia mesmo naqueles tempos uma ingenuidade pueril até nos homens mais austeros. Fruto certamente da ignorância cultivada. Sim! Ignorância-treva, que é diferente de ignorância-estupidez. Treva é, a meu ver, o termo mais adequado para a falta de conhecimento, cujo cultivo é conveniente a quem tenciona subjugar um povo. A ignorância-treva pode ser combatida com a busca pelo conhecimento, mas penso que ambas são de difícil tratamento porque este depende da vontade pessoal de seu detentor.

Esse tema me veio à cabeça dia desses quando viajava com um sujeito oriundo das paragens para onde eu me dirigia. Zona rural de difícil acesso. A estrada vicinal apresentava curvas e declives, cavas assustadoras, com barrancos de ambos os lados e árvores frondosas que entrelaçavam seus galhos retorcidos fechando o cimo com suas copas, assombreando tudo. “Nesta árvore aí, ó”, – esticava o beiço indicando qual – “aparecia uma mulher enforcada”. Mesmo não acreditando na lenda sentia eriçarem os cabelos da parte posterior do meu crânio. Foi contando as diversas “ocorrências” na medida em que os ambientes surgiam na paisagem bucólica. Ver, ver, ele nunca tinha visto, mas conhecia quem viu. E se benzia.

Pergunto por que é que as assombrações desapareceram e ele parece refletir. “Deve ser por causa das rezas, sei lá. Só sei que antes elas apareciam por toda a parte por essas bandas e agora sumiram.” Volto lá no tempo das minhas assombrações pessoais e das lendas remanescentes do velho Cercado, muitas delas alcançaram a minha meninice. Conheci até pessoas que viravam lobisomem. Tive notícias da aparição da Mãe do Ouro, da mula sem cabeça, do Caboclo D’água e de alguns seres misteriosos do feitio dos homenzinhos verdes do espaço e do chupa-cabra. Também não vi, mas conheço pessoas que viram.

Tem um ditado sulino que diz: “o diabo sabe muito mais por velho que por diabo.” Já encanecido, após alguns decênios juntando fiapos de conhecimento das muitas experiências vividas aqui e ali, olho com ceticismo certos abantesmas. Mas confesso que naqueles tempos eu preferia não pagar pra ver. Entre a molecada da Rua da Vargem corria notícias de visagens assustadoras, como a da “mulher do banheiro” que freqüentava as instalações sanitárias da escola, o que muito ajudava nos problemas de incontinência da garotada, mas o que mais me assustava era as conseqüências para a vida, de certos pequenos eventos. Por exemplo: morria a mãe de quem caminhasse para trás; quem pulasse a janela tornava-se ladrão, morria o dono do sapato que ficasse virado com a sola para cima; quem contasse estrelas contraía berrugas; mijava na cama quem assoprasse o fogo... a lista de proibições superava a da lei mosaica.

E o mau agouro? Cruzar com gato preto, quebrar espelho, ouvir o piado da coruja. O grande terror, porém, era o canto da “coã”. O nome certo é acauã, ou macauã, pássaro parecido com um gavião, que ocorria nessa região. Quando ela cantava estava agourando alguém. Quando a “coã” cantava, fatalmente alguém ali por perto morria no dia ou em breve. Por isso até hoje quando alguém prenuncia uma tragédia tem sempre alguém para empregar a expressão “boca de coã”.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 20/04/2018
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