Não é do meu agrado confessar...

Não é do meu agrado confessar que, se sua real intenção com esse teatro todo era apenas humilhar-me e irritar-me, obteve um enorme sucesso.

É sabido, e muito notório, que procuramos em nossos possíveis companheiros qualidades que não temos, ou ainda, que temos dificuldade em desenvolver. Para muitos pode parecer imenso desafio essa coisa de convivência, mas, eu via a nossa como uma completude... Aí vem você, com essa imaturidade emocional pontual e me apresenta uma mulherzinha que mal sabe onde está? Realmente procurei enxergar o que você viu de interessante; bem o conheço e tenho essa bagagem para argumentar. Mas tive que observar por mais tempo para tentar chegar a uma conclusão que me deixasse satisfeita o suficiente e forte o suficiente para que o soluço de lágrimas cessasse antes que me visse em tão lastimável estado. Nesses momentos vejo que minha postura de ‘emocionalmente equilibrada’ fica apenas na emissão de palavras porque o sentimento e imagem em si, deduram-me instantaneamente.

E o fiz mesmo, observei desde que entraram com grandioso alvoroço pelos fundos. Fiquei até a imaginar: se queriam mesmo chamar a atenção, por que os fundos? Enfim, deve fazer parte da cena, quem sabe pensaram que geraria a impressão de que não importa o caminho que fizessem, seriam notados, não?

Delicadamente com a mão na cintura dela, guiando-a pelo caminho, vi que tentou fazer acontecer uma intimidade entre vocês. Mas isso ‘eu’ notei, ela, pelo visto, preocupava-se mais com o cumprimento e olhares alheios. Exibindo o penteado espalhafatoso e a saia extremamente justa e muito acima do limite aceitável, não por questão estética, mas pela manutenção da intimidade que devia ser apenas dela; devia...

Com um sorriso sem graça, puxou-a para perto de si encostando sua boca pertinho do ouvido dela, sussurrou; ela prontamente o olhou com uma fúria contida, e também sorriu. Gostando da cena, levei o copo à boca antes que teimasse em emitir qualquer som para que notasse minha presença. Em vão! Viu-me ainda assim, ainda que encolhida no canto da sala, com o mais normal vestido creme de costume, com o batom cor da boca mais sem graça e brincos que só estavam ali para não ficarem encostados na caixa de joias empoeirada. Levantou a mão como cumprimento e eu apenas o imitei.

É claro que ela nem viu, ainda preocupada em manter a atenção de outros para si, gritou para o garçom servi-la com a melhor dose de whisky da casa, timidamente você pediu um chopp mesmo, daqueles com colarinho branquinho, típico sambista de boteco. Tão logo chegou, tomou a caneca e, olhando pra mim, ergueu a bebida procurando certa intimidade e cumplicidade que lhe faltava nesta nova cena. Por educação, e apenas por isso, também o fiz com meu copo já vazio. Aproveitei e pedi outro ao garçom. Nem vi você se aproximando, no susto já me peguei a lhe abraçar de volta. Não foi um encontro qualquer, você sentiu né? Por cinco segundos senti o pulsar do seu coração ritmado que me envolveu juntamente com o cheiro do perfume que insisto em dizer que bem combina com sua personalidade. Só o soltei porque senti que precisava ir. Engraçado que, sem nem uma palavra, trocamos confidências doces e a promessa de um encontro posterior.

Voltou à mesa. Ela continuava a falar e falar sobre sua carreira de sucesso, a plateia era grande, masculina em sua totalidade. Entediado, movimentou-se para sair de lá novamente quando foi repreendido pela mão dela segurando sua coxa. Virou-se para ele e balançou negativamente a cabeça. O beijou mais como uma ordem e não um gesto de carinho, o rubor tomou-lhe as bochechas, da mesma cor rubra que sua boca ficou após o encontro com a dela. Ali eu vi o torpor que isso lhe causou, ali notei que a paixão o tomou pelo pescoço como um enlace de boi, sabe? Mas também foi ali que notei que a fisgada dela foi pelo pescoço mesmo e não coração. Bebi o último gole que me restava no copo e fui ao banheiro, só, como a noite toda.

Como disse, irritou-me tudo isso, não só por vê-lo longe de mim mas, principalmente, por estar com ela. Ela! Contra tudo o que somos, pensamos, acreditamos... Irritou-me de tal forma que repensei a mim mesma. Será que meu ar blasé perdeu o mistério nato e o interesse curioso? Ela é tão escancarada que não há maneira de encará-la sem considerar ser teatral. Olhei-me no espelho por minutos. Assim sou. Saí de lá apenas desamassando o vestido e bagunçando os cabelos que teimavam em ficar alinhados. No coração não tinha como mexer né, mas o humor eu controlei, ou tentei... nem sei.

Desatenta, saí de lá, direto para rua, sem direito a saideira. Não por acaso, tenho certeza, estava a respirar do lado de fora. Sem me deixar entender veio ao meu encontro e apenas se encaixou em mim novamente, tudo se encaixou novamente. O afastei no momento em que percebi que ela estava a nos olhar pelo vidro da porta. Sem palavras sai andando a contar as luzes queimadas da rua, maneira besta de fingir que era isso o mais importante da caminhada. Ficou ali, esperando a última ordem dela. Sei porque olhei pra trás e vi que, cabisbaixo, subiu os degraus e entrou ao encontro dela.

Assim acabou a noite: você aos comandos infundados de ‘não sei quem’ e eu a contar os pontos que me iluminavam o caminho nas ruas escuras que agora eu fazia questão de andar apenas em minha companhia.

Sheila Liz
Enviado por Sheila Liz em 25/04/2018
Código do texto: T6318682
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