*O baile de máscaras

O baile de máscaras

Houve um tempo, logo após o sistema Patriarcal, em que a humanidade vivia em completa harmonia com seu semelhante e com seus valores. Havia pequenos erros de comportamento, mas nada que comprometesse a conduta de forma contundente.

Eram pouquíssimas as festas do povo. As mais conhecidas eram a dos Pães Ázimos (Páscoa), a da Colheita (Pentecostes) e a das Primícias (Tabernáculo). No mais, era um marasmo da gota serena! Estava insuportável viver com tanta letargia, socados naqueles cafundós do mundo.

Um belo ou fatídico dia, o Rei teve uma ideia supimpa e mandou que o Arauto convocasse os principais líderes das aldeias e da Corte para uma reunião extraordinária.

Nessa reunião, ficou determinado que o Rei daria uma festa monumental, fora de época, que duraria uma semana. Como não havia um espaço para todos no Palácio Real, a solenidade seria nas ruas, durante o dia, e à noite, nas tabernas regionais, onde as pessoas já se conheciam e tinham algum grau de afetividade.

O segundo critério era que todos deveriam providenciar uma fantasia e que o uso de máscaras seria obrigatório, até para que as pessoas se protegessem de eventuais arroubos ou excessos. Funcionariam como um salvo-conduto ou imunidade temporária. Seria expressamente proibido tocar na máscara do outro.

Ficou combinado que cada participante se apresentaria conforme seus desejos e posses, o importante era a alegria. Bebida teria aos tonéis, comidas para todos os paladares.

Às pessoas mais humildes, o Rei daria uma bolsa adereço e, como estas eram mais alegres que os nobres, receberiam uma fantasia que, mais tarde, ficou popularmente conhecida como “Bobo da Corte”.

Outras reuniões foram agendadas e rediscutidas, até que chegou o grande dia. Foi um grande barato. As fantasias e máscaras eram identificadas sem maiores esforços por quem as usava. As pessoas “se soltavam”, literalmente, perdiam a inibição e, a reboque, até os pudores. Nascia aí, uma expressão que hoje se diria “viralizada”, a de que “ninguém é de ninguém”.

Durante a festa no Palácio, o Rei teve outra ideia de doido. À meia noite, mandou que parasse a orquestra e deu outro aviso surpresa. Ele mandou que todas as luzes fossem apagadas e que os participantes trocassem entre si as fantasias e as máscaras. Em trinta minutos, recomeçaria a festança.

Nos seus guetos, a classe humilde, também chamada de pés rapados*, foi a única que não precisou trocar as fantasias, já que eram idênticas. Isso foi um sucesso monstro.

Quando as luzes foram novamente acesas, a bagunça estava generalizada. Via-se de tudo, de girafa com cabeça de coelho a homem vestido de mulher e falando fino, mas todos muitíssimos satisfeitos. Se não se reconheciam antes, agora ficara impossível detectar qualquer vestígio.

Algumas fantasias ficaram tão apertadas nos novos donos, que não se sabia como conseguiram vesti-las. Outras ficaram tão folgadas, que foram necessários mais vinte minutos para colocar enchimentos, como foi o caso do próprio Rei que era magrelo e teve que colocar muitos enchimentos, pois o dono anterior era extremamente obeso.

Comerciantes agora estavam fantasiados de arautos, nobres com fantasias de presidiários, senhoras com fantasias de prostitutas e essas fantasiadas de rainhas. Juízes fantasiados de mascates, advogados de camelôs, banqueiros de agiotas, médicos de açougueiros, religiosos de coletores de impostos e assim por diante.

Fantasias da mitologia grega como Midas, Afrodite e Prometeu foram vistas suntuosamente.

E a festa que era para durar uma semana não resistiu ao cansaço. As pessoas estavam embriagadas de prazeres, afogadas na lascívia e tontas de rum, uísque, tequila, vinho, aguardente.

Ao terceiro dia, ninguém mais resistia a tanta felicidade! Foram vencidos pela falta de preparo físico. Pelos corredores palacianos ou debaixo das moitas, a luxúria corria solta, desembestada sem cabresto. A grande maioria estava imensamente satisfeita e foi retornando, aos poucos, para suas casas e tendas.

Ainda assim, muitos continuaram. Eram exatamente aqueles que nunca estavam satisfeitos com nada, iniciando-se, assim, as dissenções.

De anormalidade crônica, daí em diante, notou-se que algumas regras haviam sido quebradas. Era lei que cada um se fantasiasse, de acordo com suas posses, mas as pessoas não se conformaram com a simplicidade e investiram muito numa fantasia que chamasse a atenção e que fosse lembrada depois. Com isso, acabaram contraindo dívidas impagáveis por uma ostentação aparente.

Outra incongruência que persiste até nossos dias é que a população ficou tão afeita à fantasia da festa, que dela não se desnudou mais. Os Bobos continuaram alegres como sempre, aplaudindo os empavonados e sendo as vítimas preferidas destes.

É bem verdade que muitas fantasias foram ruindo com o tempo, mas as máscaras não. Essas evoluíram muito nos últimos séculos e são tratadas como joias pelos seus detentores. Algumas são hereditárias, já vêm gravadas na pele. Outras são mutantes, multifacetárias. Não poucas são marcas de grifes importadas, mas nenhuma resiste a uma boa investigação.

Existem outras tidas como vagabundas, de longe já se vê que não valem nada.

É óbvio que nessa vida de faz de conta, por um motivo ou outro, acontecem acidentes e, diariamente, alguém perde a máscara, propiciando admiração e longos comentários. Por detrás daquela máscara reluzente e invejável, há sempre um rosto opaco, carcomido pela hipocrisia. Ficam, a descoberto, a inveja, a soberba, a ira e, especialmente, as maledicências.

Para muitos, a festa continua e, quem diria, patrocinada pelos que usavam a fantasia de bobos da corte, os pés rapados. Esses pobres diabos, que muitas vezes não têm onde caírem mortos, estão tão satisfeitos com suas rotas fantasias, que nem se dão conta de serem os patrocinadores dos nababescos encontros palacianos.

PS.: Antigamente, nas calçadas das igrejas, de prédios públicos e de muitas residências de pessoas abastadas, havia uma placa de metal em forma de T, encravada a uma altura de vinte centímetros do solo, conhecida como “raspa barro”. Serviam para que, no inverno, as pessoas raspassem a lama dos solados das botas e sapatos. Os ricos, geralmente desciam de suas charretes ou carruagens sobre o passeio, não tendo necessidade de usar o instrumento. Os pobres, que andavam descalços, limpavam os pés ali. Foi assim que nasceu a expressão pejorativa “pé rapado”, que se refere a quem é pobre e nada tem.