Dona Dalva

Dona Dalva.

Tão pequena, caminhava em direção ao palco que decidiria a sua vida. 1 metro e 54 cm de altura, 50 anos e uma história, toda sua. Ali, via-se muito mais do que em 5 anos de curso.

Naquele dia, uma segunda-feira, decidi assistir a um júri pois precisava de horas de prática jurídica para iniciar um estágio na Divisão de Assistência Jurídica da faculdade. Preparei-me pra tudo, levei água, lanches, folhas em branco e canetas mas não fazia ideia de que, na verdade, não estava preparada pra nada. Não conhecia os ritos do júri e assustei-me quando o escrivão leu o caso para todos os presentes. Ali, estavam o promotor, o juiz, o defensor público, alguns alunos e familiares. A mulher havia matado o marido, enforcado-o com um cinto. O homicídio era triplamente qualificado, afirmava o Ministério Público, posto que o motivo teria sido fútil, o meio cruel e o recurso utilizado dificultara a defesa da vítima. De repente, as expressões que me eram tão familiares perderam o seu significado: diante de todos, escoltada por dois policiais, Dona Dalva entrava na sala de audiências de meias, chinelos e o uniforme do hospital aonde estava internada. Já não via nada, o motivo não poderia ser fútil ou o meio cruel e o Direito Penal transfigurou-se no corpo de uma mulher que, a passos lentos, nos contaria sua história.

Sentada, ela cruzava as mãos em um momento de prece pedindo, imagino, que Deus iluminasse cada um dos 7 jurados que decidiriam o seu futuro. O juiz chamou-a no microfone pedindo que se aproximasse e ela, perdida, foi em sua direção. Aos prantos, Dona Dalva respondeu a cada uma das perguntas até que, como quem já não pode reviver o passado, pediu um copo de água. A promotora, então, levantou-se e foi até a garrafa, encheu um copo e, ao invés de entregá-lo à mulher a sua frente, entregou-o ao policial que a escoltava. Naquele momento, a mulher de 1,54m era uma criminosa perigosa, perigosa demais, perigosa até mesmo para que lhe fosse entregue um copo de água.

No microfone, ouvia-se os goles desesperados e a respiração acelerada de Dona Dalva, que contradizia-se a cada pergunta. Manicure, ela contou ao juiz sua renda mensal, sua relação com os filhos e, também, seus hábitos de lazer. Tentava-se, a todo tempo, humanizar aquela que seria, para muitos, apenas uma assassina. Mal sabia o juiz que, para humaniza-la, bastava ter-lhe entregue o tal copo de água.

A mulher que falava era, naquele momento, um número no processo que a promotora folheava enquanto buscava relembrar os detalhes dos autos. Desatenta, a acusação não a olhava nos olhos.

“Mas, afinal, como era a relação com o seu marido?”

Dona Dalva calou-se. Imagino que, naquele instante, tenha revivido tudo que a levara até ali, desde quando conhecera o marido até quando lhe tirara a vida. Ela respirou fundo, prendeu o choro e disse:

“Ele me bateu, humilhou. Sofri todos os tipos de violências. Tentei me separar 3 vezes, ele não deixou. Mudei pro Rio, ele me seguiu. Ganhei dinheiro, ele roubou. Tivemos 3 filhos, ele disse que os entregaria pra adoção. Arrumei um emprego, ele disse que tinha um caso com um chefe. No início, a relação era boa mas logo o inferno começou”.

“Mas, você está internada agora, não está?” Continuou a promotora.

“Estou sim.”

“Por alcoolismo, não é? Você bebe, Dalva?”

“Não. Estou internada por depressão, desde que o fato aconteceu.”

“Mas tenho aqui o laudo que afirma que você está internada por alcoolismo.”

“O médico me disse que era por depressão.”

Insegura, a acusada calou-se. Não adiantaria, poderia contar-lhe tudo, desde quando largou os estudos, com 10 anos, para trabalhar em uma casa de família até o dia em que enforcara seu marido mas, ali, seria, apenas, uma assassina. Resignada, disse não ter mais nada a dizer e, ainda escoltada pelos dois policiais, sentou-se na cadeira reservada para os réus.

A promotora, em 1hora e 30, expôs o caso e, defendendo a tal pretensão punitiva do estado, propunha uma pena de 20 anos. O defensor, substituto, via Dalva pela primeira vez e, seguro, prometeu-lhe uma defesa digna. Enquanto caminhava em direção aos 7 jurados, ele apertava as mãos numa tentativa de concentrar-se ao ofício que havia decidido para sua vida e, com uma eloquência inesperada, defendeu-lhe com toda a sua alma.

Dona Dalva não acreditava. Seria Deus que escolhera aquela homem ou o destino que a perdoara? Os jurados, convencidos, dirigiram-se à sala secreta e voltaram com um veredito: a ré estava absolvida.

Ela atirou-se ao chão e, incrédula, perdeu suas forças. Estava perdoada. Chorou a morte de seu marido, o arrependimento, e os 20 anos que a levaram até ali.

Com o fim da audiência, dirigi-me ao oficial de justiça pra que ele assinasse o relatório que confirmava minha presença naquele julgamento e, já na porta do fórum, encontrei Dona Dalva à espera do Uber. Nas 5 horas que, pra mim, seriam apenas 5 das 20 horas que teria que cumprir para uma matéria escolar, ela revivera tudo. Naquelas 5 horas, ela foi assassina e alcoólatra, interrogada e criminosa. Naquelas 5 horas, ela foi absolvida. 5 horas que, pra mim, eram apenas 5 horas. 5 horas que mudaram todo o curso da sua vida.

De repente, os tantos artigos que decorara para a prova de Penal transfiguraram-se na vida daquela mulher que, há pouco, conhecera as suas tais misérias. As notas, então, apequenaram-se ante o poder do Direito: muito além de conceitos, um dia, o usaria para decidir vidas e futuros de pessoas que, pasmem, talvez eu nem conheceria.

Fernanda Marinho Antunes
Enviado por Fernanda Marinho Antunes em 03/05/2018
Reeditado em 03/05/2018
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