A filha que se afasta

Era de se prever. Eu sabia que algo assim iria acontecer um dia, sabia desde antes de Talita nascer, desde o momento em que ela era apenas o sonho de um adolescente que não tinha sequer uma mãe para ela. Mais cedo ou mais tarde chegaria o dia em que eu deixaria de ser o herói e o companheiro das suas brincadeiras, o dia em que ela me veria como eu sou de fato, e nesse dia ela se cansaria e começaria a se afastar. Sem dúvida pesou o fato de não morarmos mais juntos, de não sermos mais uma família, desde o dia em que a mãe de Talita e eu achamos que não dava mais para continuar. Agora nós não nos vemos tanto quanto antes, agora ela já passa a maior parte do tempo afastada de mim, e isso no momento em que chegou à adolescência, que é quando menos se quer os pais por perto. Eu liguei para ela querendo marcar o encontro do fim de semana, porque era a minha vez de ficar com ela, e ela disse que não iria poder, tinha marcado de ir à casa de uma amiga. Eu tentei, de todos os meios, garantir que ainda assim nós nos víssemos de alguma maneira nesse final de semana, mas em tudo ela colocava uma dificuldade, parecia que não queria que a gente se encontrasse. E então eu percebi que havia começado a acontecer.

Eu, que já não tenho a mãe, começo a perder a filha, irremediavelmente. É uma fatalidade da vida, dirão, é isso que acontece com as filhas de todos os pais, mas isso só iria acontecer mais tarde, e talvez nunca de uma forma tão profunda, se nós ainda mantivéssemos aquilo que se chama de lar. Mas já não há mais lar, estamos cada um em um canto, Talita vive todos os dias coisas de que eu nunca ficarei sabendo, por mais que telefone ou mande mensagem, porque tem coisas que só se diz pessoalmente, tem coisas que só se diz compartilhando um sofá ou uma mesa de jantar. E então, quando se tenta um encontro, um desses encontros que acontecem uma vez a cada quinze dias, quando se tenta tirar o atraso desses quinze dias em que não conversamos, quinze dias em que eu não vi minha própria filha, ela avisa que não poderá ir, porque tem um encontro, um encontro com alguém que eu não conheço, alguém de quem ela nunca me falou e nem pretende, porque o pai não mora mais com ela.

Eu queria dizer que reagi bem, que entendi o que estava acontecendo e o que aquilo significava, e liberei minha filha para o encontro e para o mundo, mas a verdade é que eu não sou tão maduro assim, e no instante em que ela me sugeriu uma nova data eu já estava magoado o bastante para usar ironia contra a minha própria filha, e falar que eu iria verificar se havia um espaço disponível em minha agenda, e que se encontrasse eu retornaria. Então ela ficou quieta do outro lado da linha e eu aproveitei para desligar. E agora, eu, que sempre pensei em ter uma filha e dar a ela o nome de Talita, mesmo sabendo que não levaria muito jeito para ser pai, agora eu sou pai e eu tenho uma filha de nome Talita e estou brigado com ela. Faremos as pazes daqui a pouco, mas agora eu já não sei se me livrarei da impressão de que ela só sai comigo por obrigação, ou por alguma coisa pior, por pena ou algo do tipo, quando queria estar fazendo uma porção de coisas mais divertidas com as amigas. Tenho uma filha chamada Talita e ela está partindo.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 04/05/2018
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