Esperança

Quando chegaram na casa só havia um guarda-roupas e uma cortina estampada com flores e folhas. Devido à dificuldade em mobiliar a nova residência o guarda-roupas foi reaproveitado indo para o quarto do caçula. A cortina ficou por dois dias, apenas por distração da mãe que ocupou-se em demasia com seus cômodos.

O estado da cortina era deplorável, poré�m chamou a atenção da mãe o fato de uma folha ter sido recortada perfeitamente, deixando uma da rosas, já desbotada pelo tempo, ainda mais moribunda.

Antes disso, o caçula separou seus pertences favoritos e decidiu guardar na gaveta direita do guarda-roupas. Para sua surpresa no fundo da gaveta havia uma antiga fotografia. Nela, uma mulher com um olhar distante, olhos claros, cabelos presos, vestida com um singelo traje no mesmo tom de seus cabelos. Ao fundo da imagem, o ca�ula notou uma cortina semi-transparente que estava para ser retirada da sala. A semelhança entre a cor dos olhos da mulher e as folhas da cortina era enorme, mesmo se tratando de uma fotografia em preto e branco. Esgueirando-se pela casa foi até a cozinha e sorrateiramente pegou uma tesoura e disfarçadamente recortou uma folha da cortina, guardando-a logo depois, junto da fotografia.

Eram verdes os olhos de Lucia. Sim, ele acabou batizando-a de Lucia. Não Lúcia como sua mãe, mas Lucia. No seu imaginário, tornava o nome mais misterioso. Afinal, Lucia não passava de um mistério.

Dois dias depois ele tratou de instalar a foto confortavelmente em um porta-retrato. Cuidou para mantê-la escondida no guarda-roupas, porém, calmamente pousada entre um cobertor e um travesseiro de penas. Dificilmente passava um dia sem que a foto fosse contemplada, na vã esperançaa de que assim, com essa obsessão, pudesse, ao menos,sonhar com ela.

Assim como um nome, ele também deu a ela um dia para comemorar o aniversário. Devido à pressa característica dos adolescentes, a data escolhida foi exatamente uma semana após a foto ter sido encontrada. Com uma fatia do bolo preparado pela mãe ele sentou-se na cama e ficou contemplando a beleza de Lucia, já postada em um novo porta-retrato comprado com suas economias.

Durante os anos seguintes o ritual seguiu. Todo dia ao acordar e antes de adormecer ele admirava sua razão de viver. A cada ano adornada em um novo porta-retrato, sempre mais belo que o anterior. O estranhamento de sua mãe, que recebia 1 porta-retrato usado a cada ano não fazia com que a família desconfiasse de seu segredo. A imaginação de todos era a de que ele guardava a foto de alguma namorada, paixão, algo semelhante.

A faculdade não diminuiu o que ele sentia, mas acabou por minar todo o cuidado que ele dispensava à Lucia. Tendo passado uma noite em claro, acabou acordando atrasado para o emprego. Sua saída às pressas, o cabelo a pentear e a cama desarrumada deixaram a mãe levemente preocupada. Mas, poupou-o de questionamentos e tratou de arrumar a cama do filho, coisa que não fazia desde quando haviam se mudado para onde moravam. Sob os lençóis ela encontrou algo que a deixou aliviada, pois pode saber o motivo do filho ter se atrasado. Sim, ali debaixo da roupa de cama, estava o livro que o filho passara a noite devorando. Arrumou a cama e levou o livro até a gaveta direita do guarda-roupas, onde encontrou, carinhosamente postada entre um livro de romance e um travesseiro, o porta-retrato de Lucia. Retirou a foto do porta-retrato para analisar melhor, tentar lembrar se era alguma moça que já tinha visto andando pela casa, ou alguma colega do filho. A única palavra que poderia descrever a expressão de seu rosto era surpresa. Seu filho caçula, o único que restou na casa,o marido havia morrido e a filha após o casamento distanciou-se deles, era um jovem bonito, inteligente, com um grande círculo de amizades. Qual seria o motivo da idolatria por uma foto de uma mulher que tinha idade para ser sua avó A mulher realmente era linda. Cabelos, vestido, tudo combinava perfeitamente na foto. Ao fundo a m�e notou a cortina que havia retirado assim que chegaram na casa. Sentiu um volume atrás da foto e tirou-a do porta-retrato. No momento, caiu o pedaço de tecido que o filho havia cortado da cortina.A idade fez com que a mãe levasse alguns minutos para lembrar que havia um corte na cortina na época que a retirou. No mesmo ritmo do movimento que a mãe fez para juntar o tecido uma lágrima escorreu de seus olhos. Que amor era aquele ? Que sentimento seu filho nutria pela figura na fotografia, que o deixou cego a ponto de não notar o calendário atrás da cortina, num canto da foto que o porta-retrato escondia? No de Lucia, ele datava de 35 anos atrás. Guardou a foto no porta-retrato, cuidadosamente deitou-a onde antes se encontrava, e desarrumou a cama do filho. N�o seria ela a responsável por trazer tristeza a ele, revelando-lhe o calendário escondido atrás da cortina.

Naquela noite ele estava animado. O dia no trabalho tinha sido ótimo, a aula maravilhosa, coroada com a melhor nota na prova. Tamanha era a satisfaço que ele decidiu comemorar com Lucia. No caminho para casa comprou um novo porta-retrato. Mesmo não sendo a data do aniversário, ele iria presenteá-la. Afinal era por causa dela que ele se esforçava. Era aquela imagem que fazia com que ele lutasse dia-a-dia por um futuro melhor. Sim, era por Lucia. Como de costume comprou um porta-retrato com as bordas largas, afinal, não queria saber a data do calendário. Ele sabia tudo sobre ela. Lucia, na verdade Madalena, morreu sozinha, abandonada pelo marido e pelo filho, e em seu semblante o filho via o da própria mãe. E era daquela maneira que ele desejava que sua mãe continuasse. Apesar dos anos idos, das folhas de calendários passadas, toda manhã ela tinha um semblante alegre, pois, ao contrário de Lucia, seu filho não a abandonou.

Sir Jack
Enviado por Sir Jack em 31/08/2007
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