CÁPSULA DO TEMPO

É triste escrever isso, mas se estão lendo essa mensagem é muito provável que eu já não esteja mais entre vocês. Fico imaginando como será a reação de quem lerá essa carta. É muito mais provável também que quem lerá são pessoas com idades mais tenras do que a idade de quando a escrevi. Talvez meus netos, meus alunos, os filhos dos filhos de meus irmãos, essa rapaziada toda. Mas o que compreenderão do mundo que não viveram?

Pois bem, vivi num tempo onde a água era de graça e abundante. Com ela podíamos beber, tomar banho, lavar roupas, louças e tudo que contivesse sujeira. A água brotava do chão, do alto de uma pedra, da chuva, enchia rios, corregos, ribeirões, lagoas inteiras. Vivi num tempo onde as árvores de tão altas rachavam ao meio e caiam ao chão num dia de trovoada daquelas de dar medo, hoje, já nem chove mais. As florestas eram vastas e o ar puro que não havia jeito de congestionamento nasal ou doença respiratória, hoje, porém, se vive com aparelhos e máscaras respiratórias. Os pássaros e toda a bicharada viviam livremente pela natureza e mantinham a distância dos humanos em seu habitat natural. Hoje os que ainda restam vivem enjaulados. Lembro que podia comer a fruta ainda no pé e a abundância das variedades davam as opções entre o doce e o azedo. Hoje é preciso produzer em cativeiro e é tão caro que tornou-se luxo. O quintal era tão grande que até nos perdíamos nas brincadeiras de esconde-esconde e pega-pega. Hoje nossas crianças já nem sabem do que falo. Lembro também que nossa casa era o reduto de descanso e de complacência familiar. Hoje as famílias quase nem se veêm. As casas de minha época eram de madeira de itaúba, telha de barro e janelas com tramelas. As portas ficavam o dia todo abertas e a casa era um entra e sai de vizinhos que se ajudavam mutuamente. Hoje se vivem em cubículos um na cabeça do outro com portas e janelas trancadas com cadeados de aço. Ir ao mercado era o passeio do dia e andar de bicicleta era o que mais se pedia para fazer. Hoje compro sem sair de casa e andar até a porta já me cansa um montão. Parque de diversão era a montanha russa, a roda gigante e o carrinho de choque. Hoje, por mais que incrivel que para mim pareça, parque de diversão é um cercado de tamanho razoável, onde rios artificiais, árvores de concreto armado pintadas de verde, bichos e pássaros mecânicos, montanhas de lajes cobertas com gramado sintético e tudo mais que possa lembrar a natureza que pude viver intensamente em minha época. As filas são enormes, o tempo é limitado e o valor para vivenciar a dátiva de tempos remotos não é para qualquer pessoa.

Se hoje escrevo com tanto sofrimento o que de imediato posso constatar, quem dirá o dia em que abrirem a cápsula do tempo e se espantarem com um pequeno pedaço de papel rabiscado.

Paulo Roberto Fernandes
Enviado por Paulo Roberto Fernandes em 09/05/2018
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