o horário de verão não altera a rotina dos galos

Toda terça-feira é um dia de sacrifício para mim. O difícil e torturante despertar às cinco da manhã para assistir a uma aula no centro da cidade. Acordo com o barulho irritante do despertador, tonta no meu perambular pelo quarto ainda escuro, batendo na quina dos móveis, sem estar situada ainda na dimensão certa. Depois vem o banho frio, único modo de abrir os olhos. E não há tempo sequer para uma média ou uma musiquinha mansa no rádio para aplacar a angústia do dia que ainda se anuncia. Mas nas manhãs em que preciso fazer este esforço supremo de acordar cedo – e diga-se de passagem, no horário de verão – é que entro em contato com o universo dos trabalhadores pontuais, do qual me tornei uma completa estranha desde que dei a sorte (ou azar) de me tornar um funcionário público com horários, digamos, alternativos.

Pode o dia ainda ser noite e não tem jeito, o galo sempre canta com o mesmo vigor da alvorada. Ele não se deixa abater pelo mais frio da madrugada, nem pelo céu mais chumbo, força do adianto de uma hora. Assim são também os trabalhadores, que seguem rotina semelhante à dos galos. Muito antes do sol vazar no horizonte eles vão ganhando a rua, esses espartanos do subúrbio, vão saindo de suas tocas como romeiros; todos ao mesmo tempo, no mesmo horário e para pegar o mesmo ônibus, que tem número. Todos os dias eles revêem as mesmas pessoas, atravessam a mesma rua enlameada pela chuva de ontem, sem maiores questionamentos sobre seu lugar social. Só querem saber de entrar logo na fila, quem sabe pegar um banco para sentar, se tiverem sorte. Nunca se dão ao luxo de experimentar um itinerário diferente, talvez perder uns dez minutos e passar por aquela rua de trás onde tem umas buganvílias lindas brotando lilases como o dia que se anuncia. É que o patrão não pode esperar, empregados contemplativos não fazem os produtos girarem nas gôndolas.

Muita gente não sabe do direito à preguiça, das horas gostosas e algodoadas do sono da manhã, enquanto o mundo lá fora trucida a si mesmo todos os dias. E o acordar calmo de fazer café então, ler o jornal, brincar com o cachorro...

Mas para conseguir chegar na hora ao meu destino, preciso recorrer ao mítico e conturbado trem, caso contrário, corro o risco perder mais algumas horas preciosas do meu dia (produtivo) no engarrafamento. Mas hoje, vejam só, pela primeira vez ouvi tocar um Chico Buarque no circuito de rádio da Supervia, um pequeno plus que me fez feliz por alguns minutos, mas só até o meu trem chegar e me guinchar de volta à realidade. Impressionante é que mesmo sendo ainda seis da manhã, os vagões já estão lotados de homens e mulheres em estado de zumbi, que se agarram às chupetas (aquelas argolas penduradas) e não soltam mais até chegarem ao seu destino. As portas então se abrem, entro resignada e logo consigo um canto para ficar, tem espaço até para segurar, que luxo. Fico ali contando mentalmente as estações que faltam. Mas minha tranqüilidade dura pouco, só o tempo de ser descoberta por um homem negro e muito alterado, que falava guturalmente sem parar e parece ter simpatizado bastante com as minhas pernas. Sempre acontece, ainda mais comigo, já é conhecida a minha fama de atrair malucos de toda espécie. Este era apenas mais um bêbado tarado; o curioso é que, para estar bêbado às seis, pela lógica seria necessário que, no mínimo, ele tivesse começado os trabalhos uma meia hora antes, a não ser que ele tenha sorvido um absinto ou coisa do gênero, fato que soaria insólito, já que habitués do trem não costumam consumir esse tipo de birita burguesa. A questão é, para onde vai um indivíduo bêbado que sai de casa às cinco e meia da manhã. Teria ele se embriagado em casa, ou parado em algum boteco pela rua mesmo. Mas botecos, pelos menos os da minha rua, não abrem antes das sete, quando muito. Vou me distraindo com essas indagações inúteis, enquanto as imagens soturnas do subúrbio da Leopoldina vão germinando no vidro fosco da composição. E sou finalmente salva pelos outros passageiros solidários do assédio sexual do bêbado madrugador. Nem consegui esboçar reação, minha vontade foi de xingar o distinto e me mostrar muito ofendida, como uma boa moça honesta. Mas o máximo que minha letargia me permitiu foi abrir a boca e bocejar sem que saísse palavra. Até aqui, sete horas, uma hora e meia de viagem rumo ao meu destino; faltando uma estação e mais um ônibus, começo a acordar. Depois da aula, tenho ainda um dia de trabalho pela frente. Engraçado que, chegando à Central, as pessoas parecem mais vivas, deve ser o tranco das ordens do dia. É preciso parecer sempre bem, disposto. Gostaria de aprender com eles como se faz isso, porque até hoje, depois de tantos anos de trabalho, a única coisa que consegui cultivar foi aquele sentimento de quem todo dia tem que cumprir a mesma missão, um tédio de galo.

Jan Morais
Enviado por Jan Morais em 25/10/2005
Reeditado em 18/07/2006
Código do texto: T63378