O mestre da forja

Nossa casa ficava numa posição privilegiada, situava-se numa espécie de gargalo, único acesso da gente que ia daquele subúrbio para o cidade ou vice e versa. Também dos moradores das comunidades rurais situadas a leste que vinham à cidade passando “por dentro”. Essa expressão era muito comum e referia-se ao caminho alternativo que saía da BR262 à altura de Moreiras, e passava pelas terras do Dorvi Bino, do Zé Beraldo, já no Barro Preto, pela Fazenda dos Freis e pela fazenda do Natinho. Velha estrada de terra que muito palmilhei quando menino.

Meu pai tinha o hábito de sentar-se à porta da sala, todas as tardes depois do trabalho. As pessoas que passavam, geralmente para as atividades religiosas na velha Matriz de São Sebastião, sempre paravam para um dedinho de prosa com o velho Chico Moreira. Prosa que eu acompanhava atento sem me intrometer, não se entrava na conversa dos adultos, que criança naquele tempo não se arriscava em tais atrevimentos. O que foi bom porque me tornei ouvinte atento e observador.

Sabíamos de longe quando vinha o talentoso Zé Ambrósio porque, músico engajado nas funções litúrgicas, ele vinha tirando escalas no seu bandolim. Homem de boa compleição física, ele tinha gestos largos e tranqüilos, o mesmo jeito gentil dessa gente das pequenas cidades de Minas. Parava prendia o instrumento sob o braço, apanhava o pequeno recipiente de rapé, destampava e oferecia a meu pai que ora aceitava, ora não. Retirava uma pitada com os dedos polegar e indicador, à moda de inalar, ficava a parolar por um tempo antes de completar a ação, como que curtindo uma deliciosa expectativa. Inalava, finalmente. Repunha a tampa no recipiente. Despedia-se.

Bem mais tarde, muitas vezes quando já nos tínhamos recolhido, porque gostávamos de ouvir na cama, o programa Linha Sertaneja Classe A, no rádio a pilha, o bandolim acusava novamente o retorno de Zé Ambrósio. Foi um personagem importante da minha infância, amigo de meu pai, deu-me a alegria de partilhar da mesma. Quando muitos anos mais tarde, eu já rapaz, comecei a fazer meus primeiros acordes ao violão, sem os recursos eletrônicos de afinação que temos hoje, recorria ao velho amigo para me ajudar a resolver o problema. Tem ciência essa coisa de afinação. Ele tinha o diapasão registrado na cabeça. Afinava o meu instrumento e ia buscar o seu para tirar a prova. Nunca errou.

Tinha família numerosa. Seus filhos até onde sei estão por aqui mesmo vivendo à sombra repousante do honrado pai, cujo nome certamente lhes abre ainda muitas portas, como acontece comigo em relação a meu velho, um deles, o Claudinho, é músico como o pai, aliás, Professor Claudinho.

Mas o talento de Zé Ambrósio que mais me impressionava estava relacionado com seu ofício de ferreiro forjador com que ele complementava a renda familiar. Era colega de trabalho de meu pai numa empreiteira que prestava serviços ao extinto DNER, Ambos tinham que se desdobrar em outros quefazeres para suprir as muitas necessidades.

Uma vez estive com meu velho em sua tenda de ferreiro, estava temperando as ferramentas do cesteiro Chico. Acionava um fole de couro com uma das mãos e com outra movimentava, com poderosa tenaz, a peça já incandescente, um machado, que volta e meia levava à bigorna e ao peso da marreta ia dando-lhe a forma e a têmpera desejada. Daqueles instrumentos rudimentares ele tirava ferrolhos, aldravas, cravos, ferraduras e os mais diferentes utensílios. Era um mestre, artífice da forja. Um dos últimos remanescentes em nossa por região desse ofício milenar, porque, como sabemos, a partir da primeira metade do século XIX foram implantados no Brasil uma série de empreendimentos ligados à produção do ferro em grande escala. Isto, naturalmente diminuiu a importância e praticamente extinguiu o ofício da forja nos moldes tradicionais.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 16/05/2018
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