UM SUSTO

A maior preocupação de Gláucia era manter a conquistada fama de seu bistrô especializado em frutos do mar e saladas de verão na cidade de Prado/BA. Clientela garantida em qualquer época. Bem maior, claro, durante as temporadas, quando sua capacidade de atendimento duplicava de oito para dezesseis mesas.

Ao enviuvar-se de um oficial da marinha, decidiu mudar-se de Salvador para o extremo sul do Estado. Levou consigo sua irmã Marlene, pouco mais velha, de talento consagrado na cozinha da rede Ki muqueca, de dona Ivone. Retornaram para onde nasceram, Prado, que ganhava notabilidade em gastronomia. Contava com bom recurso financeiro, advindo do seguro de vida do marido, mais a venda de seu imóvel em Itapuã.

Mulata, cor de canela, esbelta, olhos verdes de raro brilho, ainda na faixa dos trinta anos, reluzia beleza. Além disso, simpática, de conversa afável e elegante. Sempre sob vistoso traje longo estampado com motivos florais, comandava pessoalmente o empreendimento. Com Marlene, encarregada da cozinha, programava cardápios semanais temáticos e, dentro do tema, promovia variações diárias. Exemplo: semana árabe, semana italiana, semana japonesa, semana vegetariana, semana mineira, semana nordestina etc.

Nesse formato, oferecia diariamente, como entrada, três ou quatro opções de salada harmonizáveis com dois ou três pratos principais, mais vinho e sobremesas. Com essa simplificação, podia apresentar um serviço rápido e expedito, evitando as enfadonhas delongas dos restaurantes de vasto menu.

Fossem novos ou conhecidos, seus clientes eram recebidos na porta, com largo sorriso e encaminhados à mesa sob atencioso profissionalismo.

Funcionava, de terça a sexta, a partir das seis da tarde. Aos sábados, incluía atendimento para almoço e, aos domingos, apenas almoço das onze às três. Apesar de destacável bom gosto na decoração, o estabelecimento não ostentava luxo nem riqueza.

Gláucia e Marlene moravam nos fundos do bistrô, na companhia de dois cães, um rottweiler para guarda e outro pequeno de companhia doméstica.

Durante o mês de maio, quando as chuvas ficam frequentes, decretavam recesso de um mês, para férias dos funcionários e matar saudades dos parentes e amigos deixados em Salvador.

Apesar de muitos a lhes fazerem corte, as irmãs mantinham-se descomprometidas nas relações afetivas, adotando cuidados para manter os bons amigos e parceiros de prosa. Ruim era que Gláucia não conseguia se ver livre de Ariosto, filho de endinheirado fazendeiro, conhecido por seu juízo avariado. Insistia em se dizer amigo de infância de Gláucia e buscava insistentemente tê-la como namorada. Mandava-lhe bilhetinhos, flores, chocolate e presentes em qualquer data comemorativa: aniversário, dia dos namorados, dia dos amigos, páscoa, natal e n’outras oportunidades. O assédio, frequente e ostensivo, às vezes, tomava cor de agressividade.

Tentando livrar-se desse incômodo, decidiu aceitar um pedido de namoro de um solteirão, fino, educado e gentil. Fez questão de deixar claro à sociedade

seu relacionamento afetivo. Fato que zangou e revoltou Ariosto, deixando-o desatinado, a esmurrar mesas e portas, dar faniquitos, bater pé, chorar etc.

Destrambelhado, seus bilhetes, antes românticos, converteram-se em insultos e ameaças. Embora calma e segura, Gláucia chegou a registrar queixa junto ao delegado policial local, que fez “ouvido de mercador” ao caso, atribuindo-lhe desimportância.

Assim como outros estabelecimentos, por um par de vezes, teve seu bistrô assaltado por malfeitores de capacete. Enfrentou e contornou essas desventuras com certa pacificidade. Não reagiu. Manteve-se passiva. Lamentou, mas chegou a encarar o desconforto com naturalidade, sem perder o ânimo de continuar.

Certo domingo, Ariosto apareceu-lhe como cliente. Fez questão de se mostrar descortês. Arrogante e falastrão, comportava-se incivilizadamente. Adjetivava, em tom de humilhação, o garçom e Gláucia. Exigia atendimento especial. Quebrou um prato de louça e uma taça jogando-os propositadamente contra a mesa. Tamanha grosseria sensibilizou a solidariedade dos demais fregueses - quase todos nativos e conhecidos - que sabiam das deficiências de Ariosto. Segurando-o firme pelo braço, forjando jeito e educação, levaram-no para fora do recinto.

Ao sair, Ariosto bradou: “ouça bem, dona Gláucia, ainda hoje, vou mandar matar você e seu namorado!”

Sem Ariosto, o clima no bistrô voltou ao normal e Gláucia resgatou sua respiração. Ao encerrar o expediente pelas três da tarde, o bistrô foi invadido por quatro homens de capacete e máscara ninja, armados de revólver em punho. Gláucia de pronto desesperou-se. Viu naqueles homens armados os pistoleiros contratados por Ariosto para consumar a ameaça feita horas antes. Era a morte batendo a sua porta. Perdeu toda elegância e frieza. Com as mãos espalmadas para a frente com se fossem escudos, em copioso choro, abriu sua garganta a todo o volume:

- Socorro! Acudam-me! Não me matem, pelo amor de Deus!

Seus desesperadores e ininterruptos gritos apavoraram os quatro invasores. Um deles, de olhos arregalados, chegou a falar:

- Calma, dona! Isso é apenas um assalto. Não vamos matar a senhora!

Esbaforidos, saíram.

Gláucia, já com roupas íntimas e sapatos encharcados, sentou-se, recuperou o fôlego e até sorriu em desabafo:

- Ainda bem que foi só um susto!

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 18/05/2018
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