Nonô, o esquartejador

Nonô é quase formado em Agronomia. Males que afetam a cabeça, impossibilitaram-no de concluir a faculdade. Para tentar arrefecer a doideira e – quem sabe? – curar a perturbação, Nonô recorreu à maconha, digamos, medicinalmente. Gostou da diamba e fez dela sua

companheira.

Funcionário da Secretaria da Agricultura, Nonô foi deslocado para um dos mais longínquos postos de apoio a pequenos produtores do Estado; lá, sob o comando de Tomás Emiliano, ele não incomodaria ninguém e poderia dar vazão às suas leituras, idéias e viagens (Que viagens!) fumando seus baseadinhos sem dar satisfações a seu ninguém.

Naquela repartição nada acontecia além das conversas-pra-boi-dormir de um ou outro sofrido plantador. Nonô, barba espessa, óculos redondos à John Lennon e eternamente vestido em camisas jeans de mangas compridas, perdia-se rindo com os passarinhos, com a mudança da formação das nuvens, com o trabalho das formigas, com o vôo dos tuiuiús, com o esturro das onças e o urrar tenebroso das guaribas: “nice trips on strawberry fields for ever”. Nonô atravessava uma fase de admiração, proteção e entrega total à natureza.

A estação de chuvas se aproximava e Tomás Emiliano, cumprindo ordens superiores, idealizou um mutirão para aragem de solo e semeadura de grãos. Convocou seus subalternos e deixou Nonô responsável pelo escritório: “Nada vai acontecer. Ele pode dedicar-se às suas divagações e sentir-se útil na vida”, pensou.

Investido no cargo de chefia, Nonô aboloteu-se no escritório principal, enrolou, apertou e fumou um baseado e, com os pés cruzados em cima da mesa, deixou-se abandonar em leituras e escrivinhações.

Na Região, aqui e acolá, a fumigina – doença que ataca os cítricos - vinha atacando as laranjeiras. No sítio de Altino Gonçalves, homem de trato simples, dezenas de árvores apresentavam galhos acometidos pela doença. Vendo o risco que corria parte do pomar, o agricultor resolveu buscar aconselhamento técnico. Dirigiu-se ao posto e, lá chegando, ele estranhou não ver vivalma sob as sombras das frondosas mangueiras que cercam o imóvel. Apeou da bicicleta barra-circular e, ao som de “ôs de casa!” chegou à sala onde estava Nonô. Altino pediu licença, tirou o surrado chapéu de massa de feltro e, humildemente, começou:

- Bom dia, doutô... Vim aqui pra falá cum o doutô Tomás, mode vê se vosmicê tem alguma simpatia pra combatê a fumigina que tá atacano meu laranjal... A coisa tá ficano feia, doutô... Eu tô cum medo de perdê tudim...

O técnico agrícola abandonou o livro, apoiou o queixo sobre a mão direita e, com o dedo indicador separando o nariz dos lábios, abriu um sorriso distante enquanto ouvia Altino Gonçalves:

- Meu vizinho, Zé Bigode, disse preu ir cortano os gaio atacado pela peste, mas eu tô cum medo de não dá certo e perdê minhas laranjeira do mermo jeito. O sinhô acha que eu devo retirá os gaio ou conhece alguma manêra mais mió de combatê essa praga?

Nonô, encarou Altino Gonçalves, lançou mão de uma foice que estava sobre a escrivaninha e falou calma e mansamente:

- Olhe, moço... Talvez o senhor não saiba, mas as árvores têm vida... O senhor gostaria que eu, com esta foice, cortasse o seu braço direito..., o seu braço esquerdo..., a sua perna esquerda e, por fim, a sua perna direita?

Altino Gonçalves, apavorado, abandonou a sala, montou na sua magrela e saiu pedalando em desabalada carreira tomando o rumo de volta para o seu sítio. Não entendeu que Nonô falava por metáfora. No meio do caminho cruzou com Tomás Emiliano e, sem parar nem olhar pra trás, gritou:

- Doutô, o doutô que tá lá tá querendo me retaiá!

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Aroldo Pinheiro
Enviado por Aroldo Pinheiro em 01/09/2007
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