A MALETA

Aproveitando a moda política atual de brindar o noticiário com bolsas, malas e maletas recheadas de dinheiro alheio, ocorre-me como lembrança caso que por muito tempo permeou minha curiosidade a ensaiar explicações nunca plenamente satisfatórias.

Respirávamos os ares do processo constituinte de 87/88. Com muita honra, vivia a aprendizagem de estar inserido nos trabalhos parlamentares como Supervisor da Assembleia Nacional Constituinte, acumulando as funções de Chefe de Gabinete do Primeiro Secretário, Deputado Marcelo Cordeiro. Exauríamos esforços nos intermináveis expedientes que se iniciavam às sete da manhã para findar, muitas vezes, depois da meia noite. Contudo, não nos vergávamos à fadiga, embeberados pela consciência da importância cívica de nosso trabalho. Eterna e gratificante experiência laboral que a mim somou anos de maturidade política e social e me fez amigo de muita gente importante.

Foi nessa ocasião que conheci o casal de argentinos Brício e Dola. Ela funcionária de um organismo de cooperação internacional. Ele, tipo freelance, transitava junto a meia dúzia de grandes imobiliárias a intermediar negócios de aluguel, compra e venda com estrangeiros em vias de fixarem residência na Capital Federal. Além de fluente em português, Brício dominava também a língua inglesa. Tinha presença garantida nas reuniões sociais patrocinadas pelo corpo diplomático. Elegante, simpático, falante e agitado, descontraía e alegrava o ambiente promovendo conhecimento entre pessoas. Fui por ele apresentado a inúmeros diplomatas residentes na Capital Federal.

Não raro promovia churrascadas em sua residência na QI 15 do Lago Sul. Fazia questão, ele mesmo, de preparar parrilhas com carnes especiais importadas da Argentina.

O que me fazia próximo de Brício era ouvir seus casos, interessantes e sempre relatados na primeira pessoa, como se fossem passagens reais de sua vida. Muitos deles, me foram relatados durante as caminhadas que fazíamos juntos nos fins de semana pelas calçadas margeantes à Via Dom Bosco. Nesta penada, descreverei um deles. Outros virão na oportunidade certa.

Brício disse estar fazendo sua costumeira caminhada em direção à QI 23 quando, ao atravessar a ponte sobre o córrego Cabeça do Veado, que separa a 19 da 21, jogou-se para baixo numa ribanceira marginal a fim de se proteger de uma perseguição automobilística. À toda, vinham na sua direção um automóvel e logo atrás uma viatura policial de sirenes abertas. Camuflado entre arbustos e capinzal, viu ser atirada em sua direção uma maleta daquelas tipo 007. Com o impacto, abriu-se e derramou seu conteúdo: muito dinheiro, dezenas de pacotes de notas de cem dólares.

Atordoado em suas razões, juntou todos os pacotes de volta na maleta e regressou para casa, evitando a via movimentada, onde poderia haver alguém em busca daquela grana. Trancado em seu quarto, fez uma contagem rápida e certificou-se de estar com mais de cem mil dólares.

Procurou, mas não achou, qualquer pista que pudesse revelar a origem ou a propriedade da maleta. Aguardou a chegada de Dola, contou-lhe sobre o ocorrido, mostrou-lhe os dólares. Dela também não recebeu qualquer sugestão do que fazer. Ensacou os maços em meias grossas e guardou-os numa fronha sob o tablado fechado de uma sapateira, no interior de seu guarda-roupas. Deu fim à maleta vazia atirando-a disfarçadamente no lago, quando tarde da noite atravessava a Ponte das Garças.

Ligou-se atentamente à mídia - jornal, rádio e TV – na expectativa de ouvir algo a respeito.

Passado um tempo, matéria jornalística na TV dava conta de que a polícia, após meses de busca, apreendera um conhecido traficante de drogas. O procurado, há meses, escapara de perseguição policial, levando uma maleta com mais de cem mil dólares recebidos como pagamento pela entrega de grande carga de maconha.

O noticiário ainda informava que tais dólares tinham as cédulas com os números de série registrados, pois foram roubados em assalto ao cofre do Citybank. Detalhava também que a prisão do traficante só fora possível porque o mesmo tentara comprar automóvel novo numa concessionária, dando como pagamento os tais dólares marcados. A notícia divulgava também os números de série das cédulas.

- Epa! Exclamara Brício. Como? Seriam as cédulas guardadas em sua sapateira duplicatas falsas das apreendidas? Imediatamente foi ao guarda-roupas conferir. Ao retirar de lá a fronha e as meias, surpreendeu-se. Nenhuma cédula de dólar presente, só pedaços de jornal velho, atados com liga elástica.

Quem sorrateiramente violara seus aposentos, descobrira o dinheiro escondido e o levara, deixando em seu lugar maços de papel imprestável?

Pior. Como esses dólares retornaram exatamente ao traficante perseguido naquela oportunidade em que a maleta fora atirada pela janela do carro?

Seus empregados domésticos permanentes, uma cozinheira-arrumadeira e um jardineiro, que dormiam no emprego, eram conhecidos de anos e tidos como confiáveis. Uma lavadeira-passadeira, que trabalhava duas vezes por semana, não tinha acesso ao interior da casa, muito menos aos aposentos.

Dola, sua esposa, estava fora de suspeita. Por lógica, mesmo que fosse por medo de problemas e complicações em sua vida, não tomaria a decisão de se desfazer do dinheiro sem contar com a concordância de Brício. Ainda que assim agisse, não usaria o artifício de substituir os maços de dinheiro por papéis de jornal.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 22/05/2018
Reeditado em 22/05/2018
Código do texto: T6343457
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