CONVERSA DE ELEVADOR

Foi aí nos anos setenta, oitenta. Os elevadores que serviam às torres do Edifício Venâncio 2000, em Brasília, contavam com um chamativo ascensorista: Firmino. Portador de voz grave. Gravíssima. E gutural. Ganhou o apelido de “Besouro”, dado pelos comuns. “Tenor”, pelos mais letrados. Embora desnecessário, por conta dos indicadores externos. Firmino fazia questão de vociferar, a cada parada:

- “Sobe!” ”Desce!” ”Bom dia! ”Boa tarde!” ”Quinto andar”...”Radiobrás!”

Aquele vozeirão, não raro, causava susto e surpresa aos novatos por ali. Negro absoluto, era ciente da diferença que estampava. Não relaxava nos trajes. Camisa de mangas curtas, impecavelmente branca e bem passada, contrastando com uma larga gravata preta de cetim. Harmonizada com a calça azul de tergal brilhante.

Alto e espadaúdo, deixava à mostra, nos dias de verão, parte de seus delineados e bem desenvolvidos bíceps. Respondia a curiosos e curiosas, que não fazia e nem fizera ginástica. Toda aquela forma creditava-a à sua vida anterior em Helvécia, Bahia – sua terra natal - carreando água do Ribeiro para consumo nas residências urbanas.

Apesar da elementar formação escolar, exibia inteligência acima da média. Não perdia a oportunidade de aprender a partir do que lhe chegava à percepção. Principalmente as conversas. Não era de muita leitura. Interessava-se por quase todo tipo de assunto, inclusive pela vida alheia. Não só registrava na memória quase tudo que via, ouvia e cheirava, como manipulava habilmente esses registros, extraindo-lhes concepções. Também falava, com riqueza de detalhes, das novidades na área de produção de alimentos e de tecnologia agrícola. Pudera! A Embrapa também tinha sua sede nacional instalada naquele conjunto de prédios.

A Radiobrás ocupava igualmente o quinto andar do prédio. Pelo elevador também circulava gente da mídia, dos palácios, cheia de notícias frescas e opiniões, principalmente sobre a movimentação política nacional. Besouro não deixava escapar nada. O conteúdo memorizado era a base para criativas histórias que seriam depois contadas no ponto de taxistas, onde gastava seus intervalos de folga. Nunca aos usuários do vai-e-vem.

As histórias eram sempre recicladas e atualizadas, ainda que, para tanto, fosse necessário inventar um novo “fato verídico”. A maioria delas abordava episódios da vida alheia, ou novidades políticas, colhidas em Brasília, onde “se sabe de tudo”, segundo ele. Rabiscava anotações, selecionando e destacando “causos” a serem contados, durante as férias em Helvécia, na plataforma da estação, em noite de lua cheia.

Firmino, mesmo com suas limitações, abusava da criatividade para forjar contos a partir de fragmentos incompletos de conversas. Capturava até mesmo confidências, distraída ou inocentemente reveladas em discussões azedas e em frouxos diálogos. Ajudava-o, no exercício da fofoca, a presunção de conhecer a vida e - em alguns casos - até as intimidades de cada um dos costumeiros usuários.

Até hoje repercute a história, por ele contada no abrigo de ônibus, em Helvécia, escutada por Keti, Tonhinha, Hélio de Keti, Wilson Rafael e outros presentes.

Tratava-se de um casal que discutira sobre um mau cheiro, sentido pelo marido ao despertar. No elevador, a mulher ouviu acusações por não ter lavado direito alguma coisa. No que retrucara afirmando ter feito a higiene perfeitamente, tendo até aplicado desodorante.

Foi o bastante. Firmino passou a aguçar o nariz assim que a cidadã entrava no elevador, a fim de confirmar suas suspeitas. Não tardou e não deu outra. Certo dia, a dama entrou no elevador exalando cheiro conhecido. Bingo! Firmino não se aguentou. Ausentou-se do posto por alguns minutos para curtir e conter sua crise de grossas gargalhadas.

Naquela tarde, os taxistas tiveram o que ouvir e com o que se divertir. A coitada da dama, sempre elegantemente bem vestida, perfumada e de hábitos finos ficara, sem saber, taxada de fedorenta por um bom tempo.

O mistério foi desvendado, para desgosto de Firmino, quando a fofoca chegou aos ouvidos de um vendedor ambulante de pacotes de camarão congelado, que fazia ponto nas imediações do prédio.

Com a memória do ambulante, esclareceu-se que a referida dama era sua freguesa de compra. Sempre ao final do expediente. Porém, semanas antes, comprara-lhe e levara-o consigo, um pacote de seus camarões, ainda pela manhã, por conta do preço de ocasião e da grande procura que ameaçava esgotar o estoque.

E Besouro já contara dezenas de curiosas histórias para sua plateia de taxistas e helvecianos.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 23/05/2018
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