GARCIA

Dezenove de outubro de 2014, o Papa Francisco beatificou Paulo VI, nascido Giovanni Montini. Era junho de 1960, quando ainda Arcebispo da Arquidiocese de Milão, na Itália, o Cardeal Montini visitou o Brasil, a convite do Presidente Juscelino Kubitscheck, para abençoar sua nova Capital. Por este rincão verde-amarelo curtia-se festivamente os humores e sabores da inauguração de Brasília, bem como os ares esperançosos soprados no Planalto Central. A primeira pisada de Dom Montini em solo brasileiro foi no Rio. Solenemente recebido como alta autoridade clerical pelo Arcebispo do Rio, Dom Jaime Câmara, de súbito, delegou a seu bispo auxiliar, Dom Hélder Câmara, as funções de cicerone. Juntos visitaram, dentre outros pontos da velhacap, favelas e comunidades carentes. Tornaram-se amigos pessoais.

Nessas andanças, contaram com o apoio do simpático e prestativo seminarista Garcia. Rapaz afiado no Latim e no Italiano. Praticava a fluência nesses idiomas diuturnamente com Frei Carlo Franco, italiano, seu admirado e inseparável professor no seminário São José. Preparava-se para ir além das funções clericais. Sonhava em ser professor de filosofia, história e línguas românticas.

Garcia contava e recontava essa passagem de sua vida com alto sentimento de orgulho e saudades dos momentos em que se sentiu de elevada importância. Segundo ele, seus serviços de apoio foram substanciais aos deslocamentos da dupla Montini-Câmara, no Rio de Janeiro. Acrescentou, como contraponto, que, por vezes, até excedia em suas falas no afã de exibir habilidade linguística e se fazer cativante ao Cardeal de Milão. Nunca escondeu seu amor pela Itália e pelos italianos. Inda mais para com uma famosa autoridade religiosa. Contudo, nunca tivera a oportunidade de visitar a velha península mediterrânea.

Mais chegado ao mundo que às alfaias, Garcia não tardou a abandonar o hábito e se tornar - como sonhara - professor não só de línguas estrangeiras como também de história e filosofia.

Fora seus méritos culturais, Garcia era um divertido contador de causos. Gabava-se de ser exímio pescador. Relatos de suas peripécias com o caniço deixavam qualquer um de boca aberta, pela firme e jurada verossimilhança. Conseguia fazer com que suas histórias remanescessem a provocar solitários risos nos interlocutores por dias, dada a riqueza de detalhes.

Morava em Brasília e lecionava em colégios da Fundação Educacional. Circulava a bordo de uma Vemaguete, carro tipo minivan da antiga DKW Vemag, pioneiro na tração dianteira, com ampla abertura traseira. Era esse seu veículo também de pescaria. Contou, certa feita, que pescou no Rio São Francisco, nas proximidades de Três Marias, um belo e gigantesco Dourado. Peixe rebelde e resistente à retirada da água. Exigira muita paciência. O afrouxamento e recolhimento de linha já se arrastavam por horas. Cansado, resolvera atar a ponta da linha ao pára-choque traseiro da Vemaguete,

estacionada na rampa da margem, em sentido ascendente. Movendo o auto no vai-e-vem, podia “dar e recolher” linha poupando esforço físico. Assim foi até a exaustão do peixe. Puxou-o para fora d’água. Aguardou até que parasse de se bater. Para embarcar o peixe no bagageiro foi altamente criativo. Substituiu a linha de pesca por forte corda de sisal. Passou-a por dentro do carro, pela janela, inclusive, e amarrou a uma árvore adiante. De marcha à ré, fazia a corda deslizar, até embarcar o peixe, ainda que parcialmente. Cerca de dois terços, mesmo com os bancos traseiros rebatidos. Muito grande para caber inteiramente! Nisso, as rodas dianteiras perderam o contato com o solo. Garcia ajustou o peixe mais na diagonal, o que permitiu precariamente abaixar a frente do carro. Desatou a corda da árvore e amarrou-a na base do banco dianteiro. Ainda assim, não havia suficiente atrito dos pneus dianteiros tracionadores. O carro não saía do lugar. E para piorar: o barulho e vibração do motor fazia o peixe se contorcer. O carro recuava gradativamente. Terminou com a traseira dentro d’água. O peixe, submerso, revigorou-se e terminou escapando. Nenhuma foto, nenhuma testemunha. Qual o tamanho do peixe?

Casou-se em 1966. Ganhou, como presente de núpcias, viagem à Itália. Seu grande sonho: visitar o amigo Cardeal Montini, agora Papa Paulo VI. Tentou a todo custo uma audiência pessoal. Nada. Convenceu-se da impossibilidade. Sobrou-lhe participar da Bênção do Ângelus, às seis da tarde, na Praça São Pedro, em meio a centenas de outros visitantes.

Era início de inverno. A noite chegava mais cedo, deixando o crepúsculo meio turvo, sem muita visibilidade.

Mesmo assim, quando Sua Santidade chegou à janela para a celebração, todos ajoelharam. Menos Garcia, extasiado. Foi então que Paulo VI, aguçou sua vista, colocou a mão na testa para se proteger dos holofotes e, em voz alta, exclamou:

- “Garcia, tu qui in Vaticano?” (Garcia, você por aqui no Vaticano?).

Garcia, em soluços, respondeu:

* “Sì, Santità!”

Por muito tempo, Garcia dizia arrepiar-se todo e lacrimejar ao contar essa passagem de sua vida.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 25/05/2018
Código do texto: T6346103
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