Sobre panetones e caminhoneiros

Barbearias são pequenos fenômenos sociológicos, principalmente em épocas de crise política.

Quer dizer, junte um bando de homens, deixe-os na ociosidade de quem espera a sua vez, e então levante a polêmica que agita as manchetes dos jornais, e, tcharam!, você arranja fácil um tema para sua tese de doutorado.

Só é preciso ter muito cuidado, pois um dos presentes é versado na arte das navalhas de aço inoxidável.

- Rapaz, e que bagunça esses caminhoneiros estão fazendo, hein! – alguém levantou a bola.

Chafurdei no sofá, ergui a revista de modo a tampar meu rosto. Lia uma interessante matéria sobre panetones, e tenho certeza que ela não envolvia riscos de degola, mesmo que eu discordasse dos métodos de fermentação natural típicos da iguaria natalina. Desde o ‘processo’ da Dilma aprendi que em barbearias todo e qualquer comentário carregado com valor adjetivo torna-se potencialmente problemático – por isso o eufemismo ‘processo’, explica-se.

- Tão fazendo mesmo uma bagunça das grandes – concordou outro, jogando um pouco mais de lenha na fogueira.

- Eu ia pescar lá pros lados da chácara do Tião. Nem fui porque não tá dando pra ir – confessou aquele que estava sendo barbeado, não sem transmitir uma raiva contida.

- Pois eu acho que isso é uma vagabundagem só.

Pronto, daí em diante não tinha mais como segurar. Me concentrei na matéria da revista. Sabia você que panetone tem esse nome porque o nome original era ‘Pão do Toni’, ou ‘pan di Toni’ em italiano? Que coisa mais curiosa são os nomes das coisas. Pensei em comentar isso. Mas nenhum dos demais presentes parecia minimamente inclinado a assuntos de panificação, pelo menos não naquela manhã de sábado quando os postos da cidade já não tinham mais combustível.

- Eu tô andando com bala no bolso – continuou o tal da vagabundagem -, e se vierem me parar eu meto bala.

É curioso. O governo mandou destrancar tudo, dando aval pras forças federais descerem bala. Os caminhoneiros mais exaltados já prometeram responder com bala. E o famoso ‘cidadão de bem’ também tá querendo meter bala porque não consegue ir e vir. E temos um candidato à presidência que quer que todo mundo tenha mesmo o direito a descer bala. Será que a Taurus já ta pegando currículo?

O mais idoso na barbearia, talvez iluminado pela experiência e pelo espírito do apaziguamento, dá um riso gostoso. Um tipo de riso que invejo: ao mesmo tempo que traduz diversão, não menospreza aquele que é a razão do divertimento. Um riso que desarma controvérsias.

- Meter bala pra quê, ô Pedro? Tâmo tudo fudido, tudo no mesmo barco. – e ria da bala, e do Pedro, e da nossa situação, que, realmente, ou rimos ou choramos dela.

- Eu só acho... – começou um homem que até então estava quieto.

Abre parênteses. Tenho medo dos quietos quando, do nada, vêm dizer o que acham. Pode ser coisa boba minha, preconceito até. Mas sempre me fazem segurar a respiração quando entram do nada em um debate que periga ficar tenso demais. Tive a impressão de que o cara ia dizer ‘Lula Livre!’ e jogar fogo de vez naquela barbearia. O que não deixaria de ser interessante ao seu modo. Por isso foquei na revista. Reza a lenda que o panetone foi inventado por um sujeitinho que tava apaixonado pela filha do padeiro. E aí, para impressionar o padeiro, o Romeu mostrou suas habilidades inventando a receita que viraria sinônimo de natal. Se é assim, por que panetone não é também tradicional no Dia dos Namorados? Fecha parênteses.

- Eu só acho que eles não precisavam bagunçar tanto assim. Quer manifestar, manifesta. Mas tem que fazer toda essa zona?

Lembrei das manifestações de 2013, quando a coisa da tal bagunça também virou debate. Debate e meme. Tinha aquele, sensacional, remetendo à tomada da Bastilha, situação chave da Revolução Francesa, esse episódio insignificante na história da humanidade. O meme era a imagem da galera em frente à Bastilha e alguém dizendo “Sem vandalizar a Bastilha, galera! Bora fazer uma petição online”. Sim, sempre ordem e progresso, né – que agora, depois do update vampiresco, virou ‘ordem é progresso’.

- Isso é um bando de vagabundo – voltou à ativa o senhor que queria meter bala.

- O que dá tristeza é ver a produção se perdendo na estrada, mas se não tem jeito...

Esse foi o barbeiro comentando. Me parecia que ele tentava escapar dos adjetivos e julgamentos e colocar a conversa num eixo mais ameno. Bem, comemoremos o fato de que o homem da navalha era um homem sensato.

- Logo passa, essas coisas sempre passam e a vida continua – emendou o mais idoso, com aquelas rugas de quem já viveu as melhores chacoalhadas da nossa jovem democracia.

Tudo passa, tudo é passageiro - só o motorista que não (desculpe por essa). Há certo perigo nessa resignação, mesmo que dotada de cabelos grisalhos e sorriso apaziguador – talvez justamente aí é que esteja o perigo. Assim como é perigoso anotar alienadamente a receita do panetone enquanto do lado se discute um novo elemento dos novos tempos que surgem no horizonte da vida brasileira.

É óbvio que precisamos nos mobilizar, que precisamos encarar o debate em torno do que acreditamos.

Porém, fica a dúvida: o que é mais (des)construtivo, hates facebookianos ou rompantes na fila da barbearia?

- Vocês viram só como tá fresquinho hoje? – continuou o velho. Hoje vai tá bom pra ir na feira.

Alguém comentou do pastel frito, outro falou do queijo fresco, e alguém disse que tinha de comprar dois salames defumados. E segue a vida. Pra algum lugar desconhecido, mas segue... E agora com receita de panetone, é claro.