TEMPOS DE REPÚBLICA

Rua Correia Dutra, 154, Sobrado, Bairro do Catete, Rio. Esse era nosso endereço. Meu, de Rômulo, Geraldinho, Fábio Vogel, Geraldão, Ademar Gianini, Zé Menezes e Ronald Magalhães. Eventualmente, Chico Nilo, servindo o exército na época, acomodava-se por lá para pernoite.

Eram três quartos, oito vagas. Sem contar o quarto da frente que tinha porta e varandinha dando vista para a rua. Este era ocupado – quando no Rio - pelo noivo da filha da senhoria, Dona Iracema. Nunca ninguém entendeu bem que tambor esse moço batia. Ausentava-se da cidade com tanta frequência que não se sabia onde morava, lá ou cá.

Com o tempo, a pensão ou república foi se alterando. Desse grupo, Zé Menezes foi o primeiro a sair. Já bacharel em direito, foi exercer sua profissão em Nanuque/MG. Seu companheiro de quarto, Ronald Magalhães arrumava malas para retornar a Cataguazes/MG, sua cidade natal. Não tardou a incorporar ao time, Carlos Augusto, vindo de Salvador.

Mesmo uns saindo e outros chegando, a demanda por vagas cresceu. Dona Iracema, então, resolveu improvisar um quartinho no topo da escada para acolher seu sazonal futuro genro e liberar o quarto da frente para Carlos Augusto. Era o cômodo mais ventilado da pensão. E ainda oferecia, de lambuja, a distração de se usar a varandinha para ver o movimento de transeuntes. O trânsito de veículos circulando por lá, naqueles idos de 1959, era totalmente inofensivo. Pela via, quase só mesmo carroceiros, vendedores de picolé e portugueses compradores de garrafas e jornais velhos. A quebra do sossego era sentida aos sábados, pela manhã, quando fervilhava uma feira livre - como sempre - barulhenta.

Carlos Augusto era o mais diferente do grupo. Não só por ocupar o quarto da frente. Externava com incrível facilidade seus sentimentos. Saudades de sua terrinha, Carlos Chagas/MG; de seus pais, dr. Pedro e dona Ana; da Bahia, onde deixara namorada. Apavorava-se com a perspectiva de eventos futuros desagradáveis e com qualquer indicativo de isolamento social.

No outro extremo, estavam Fábio Vogel e Geraldinho. Sempre alegres, positivos, gozadores, contadores de causos e divertidas experiências pessoais.

Certa noite de sábado fomos a um “hi-fi” dançante no salão de festas do Hotel Novo Mundo, na praia do Flamengo, quase na confluência de nossa rua. Voltamos juntos, pelas onze horas.

Carlos Augusto flutuava no paraíso. Falava do amor, do perfume, dos sons e de tudo que lhe marcara naquela noite de sonhos. Arrumara uma namorada com quem dançara quase todas as músicas orquestradas por Severino Araújo e Seus Violinos Ciganos. A pretensa namorada contou-lhe morar na Rua Bento Lisboa, transversal arrematante, a alguns metros da nossa república. Deixaria a festa um pouco mais tarde. Caminharia, na companhia de seus tios e primas. Combinaram: ao entreolharem-se durante a passagem defronte à varandinha do Carlos Augusto, trocariam românticos acenos e

beijinhos soprados. Uma gracinha! Tudo isso delirantemente relatado pelo recém-apaixonado mancebo.

Carlos queria testemunha para a cena romântica planejada. Fábio, a fim de conferir aquele “filme”, aceitou o convite para lhe servir de companhia enquanto aguardava ansiosamente o esperado momento. Os dois na varandinha e o tempo passando. Junto com o tempo, alguns vagalumes, brisa fresca, uns e outros vagantes. Misto de cansado e deslumbrado, Carlos resolveu aguardar recostado na cama, deixando Fábio de vigília, incumbido de informar quando a moça se aproximasse.

A cada som de passos estalados na rua, Carlos se levantava para conferir. Ao constatar portugueses usando tamanco e outras figuras de chapinha no sapato, voltava desolado ao recosto. Cansou-se desse vai-e-vem. A cada som que mexia com sua imaginação indagava ao Fábio: “é ela?” Passava de meia noite. Fábio, cansado de responder “não”, inclinava-se a abandonar o posto. Foi quando se ouviram da rua sons lembrando saltos altos em marcha. É ela? Voltou a perguntar. É, assegurou enfaticamente Fábio. Carlos levantou-se ligeirinho, arrumou a gola da camisa, passou as mãos no rosto, realinhou os cabelos e dirigiu-se sorridente à varanda. Respirava fundo e ofegante.

Os sons provinham do andar cadenciado de uma velha égua de carroceiro batendo suas ferraduras no pavimento.

Carlos curvou-se, repousou a cabeça sobre o balaustre e misturou choro e sorriso. Fábio abandonava o quarto pelo corredor saboreando a molecagem. Em suma, a pretensa namorada nunca passou por ali e nem mais foi vista nas redondezas. Virou cinderela!

As brincadeiras e gozações permeavam nosso alegre cotidiano. A turma do quarto do meio - o Maracanã - resolveu alugar apartamento na Silveira Martins, rua vizinha. Mais tarde, eu, Romulo e Chico Nilo fomos morar num apartamento em Ipanema. Da Pensão de dona Iracema restou saudade. Muita. Até hoje.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 26/05/2018
Código do texto: T6347348
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