BENEDITO BOSTA

Contava meu irmão primogênito, Oldemar, que, lá pelos anos de 1944, governava Minas Gerais, na condição de interventor, o famoso político Benedito Valadares. Em Teófilo Otoni havia um senhor chamado, por força de sua certidão de nascimento, Benedito Bosta. Vendia loteria no bar de Agostinho Marx, nas portas dos Correios e dos Bancos da Lavoura e do Brasil, Fazia ponto ali pelas imediações do Cine Vitória. Benedito, embora analfabeto quase absoluto, era entrosado com o pessoal bem de vida, frequentes na cachaça e na cerveja vespertinas. Sempre antenado, mantinha em sua cachola o “who is who” (quem é quem) da cidade e os eventos mais importantes ocorridos ora e outrora. Nas mesas com os amigos sempre sacava novidades como tira gosto para a cerveja que generosamente lhe era ofertada. Às vezes ousava pedir um traçado de fernet. Destravado etilicamente, contava causos e fofocas, especialmente sobre as dondocas saltadeiras de cerca. Falava em voz baixa, na maior seriedade, em tom de segredo, segurando levemente o braço do interlocutor.

Apesar desses momentos de fuleragem, Benedito, para os demais, era de pouca graça. Avesso a chacotas, um tanto sisudo e quase sempre de mau humor. Criança nem adolescente tiravam prosa com ele.

Os metidos a analistas comportamentais vinculavam sua fraca sociabilidade ao fato de ter sido achado no mato como criança recém-nascida abandonada. Seu pai de criação, roceiro, bronco e desprovido de paciência, já era idoso e viúvo quando o pegou para criar. Contou, para tanto, com os serviços de uma filha adulta não menos bronca, meio abobalhada.

Sobre a história de seu nome, contam que certamente resultou da pouca habilidade e má caligrafia de um juiz de paz itinerante que periodicamente saía pelos grotões a registrar crianças pagãs da roça.

Certa vez, Sr. Aurélio, caixeiro viajante atacadista, bem conhecido na roda e dono de mais dinheiro que a média local, resolveu desentalar algo na garganta.

- Ô Benedito, por que você não tenta mudar de nome?

- Já me falaram isso, seu Aurélio. Mas dizem que é muito difícil. O tabelião daqui nem me recebe para falar do assunto. Se o senhor conseguir, eu concordo.

- Pois bem. Eu conheço e tenho boa amizade com dr. Sidônio Ottoni, que é amigo do dr. Benedito Valadares. Ele certamente há de resolver essa questão.

A partir daí, o assunto passou a constar da ordem do dia das conversas do fim de tarde, no Agostinho Marx. A aceitação de Benedito Bosta em trocar de nome animou a turma. Duas semanas passadas, chegou a boa nova. Dr. Benedito Valadares concedera audiência especial a um grupo de políticos, liderado por Dr. Sidônio. Data acertada, lá se foi a Belo Horizonte, a comitiva

em dois autos. A caminhonete tracionada do Sr. Aurélio mais um jipe alugado. Os quinhentos e poucos quilômetros de terra teriam que ser vencidos em seus atoleiros e buracos.

Saíram pela madrugada e chegaram ao cair da tarde. Manhã seguinte, todos já na antessala do Interventor, devidamente anunciados pela agitada secretária, Dona Glorinha.

Não demorou muito. O interventor pessoalmente abriu as portas de sua magnífica sala e com os costumeiros sorrisos, alegria e braços abertos pediu a todos que entrassem e se acomodassem. Benedito Bosta, acanhado, aboletou-se numa poltrona ao lado de seu Aurélio.

A conversa iniciou com perguntas do interventor sobre a região, a produção e comércio de pedras preciosas, a Estrada de Ferro Bahia e Minas, a bacia leiteira do Vale do Mucuri e outros assuntos do gênero. Foram momentos introdutórios, permeados por sorrisos, cafezinho e memoráveis feitos do saudoso Teófilo Benedito Ottoni.

Passados os prolegômenos, dr. Sidônio falou sobre o interesse e a necessidade de Benedito Bosta em alterar seu nome e das dificuldades burocráticas interpostas. Sob recomendação do Interventor, provavelmente o tabelião fragilizaria os obstáculos e procederia a alteração desejada.

Benedito Valadares, de pronto, concordou. Tomou em suas mãos um bloco de memorandos timbrados com a marca do Governo de Minas Gerais. Ali mesmo, na poltrona onde se recostava, com a caneta na mão, começou a redigir seu pedido ao tabelião de registro de pessoas físicas de Teófilo Otoni. A certo ponto, dirigiu-se a Benedito Bosta e indagou:

- Caro Benedito, como você gostaria de passar a ser chamado?

Benedito limpou a garganta, ainda meio nervoso, respondeu:

- João Bosta, seu Interventor. Acho que fica bem!

Alvoroço geral, tosse, sorrisos, murmúrios, panos quentes daqui e dali. Seu Aurélio tomou a palavra. Tirou da cartola um argumento de última hora. Afirmou categoricamente que o sobrenome verdadeiro de Benedito era “Bastos”. Tratava-se, pois, de um terrível engano cartorial. Tudo resolvido.

Uma ova! A criançada e os adolescentes locais nunca trocaram o Bosta por Bastos.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 26/05/2018
Código do texto: T6347351
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