CAUSOS D’ÁGUA - JOARI

Uma das oportunidades em que estive com Alfredo, foi num seminário em Manaus para avaliar a integração de esforços de pesquisas para a Amazônia, com a participação da Embrapa, do INPA (Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia), Museu Emílio Goeldi, INCRA, das Universidades Federais do Amazonas e Pará e de instituições oficiais de extensão. O evento deveria durar dois dias, na quinta e sexta-feira. Atraso no comparecimento de representantes, assim como a multiplicidade e a complexidade de assuntos elencados, terminaram prorrogando o evento para mais dois dias da semana seguinte.

Só para lembrar, Alfredo é aquele extensionista que atendia a população ribeirinha nas águas amazônicas. Dele, eu gostava de ouvir experiências, sempre inéditas, no trato com aquela gente especial, de vida distante, quer no espaço, quer nos costumes.

Para ocupar o fim de semana, aceitei seu convite para singrarmos o Rio Negro acima até a localidade de Novo Airão. A viagem estava estimada em quatro horas. Partimos manhãzinha, antes das sete. Meu interesse era, além de conhecer aquela parte do Rio Negro, ouvir causos d’água durante o deslocamento. E não deu outra.

Falou que conhecera uma comunidade de ribeirinhos indígenas na boca do Rio Branco (confluência com o Rio Negro), na divisa entre Amazonas e Roraima. Pernoitou nessa vila certa vez. Sob a luz e o calor da fogueira, compartilhou com os residentes canecas de cauim aromatizado com ervas. Comeu lascas de tambaqui moqueado nas escamas, em bandas e irrigado com tucupi.

Nessa ocasião, o líder comunitário era o caboclo Joari, com quem varou madrugada conversando. Nascera de mãe índia da etnia Aruak e pai estivador do cais do porto de Manaus. Aprendera a fabricar e negociar artesanatos indígenas. Desses que turistas fazem questão de ostentar para registrar passagem por terras indígenas. Joari circulava com sua canoa pelas tribos ribeirinhas do Negro comprando arcos, flechas, lanças, tacapes, zarabatanas, flautas, gamelas, colheres, cocares, brincos de pena etc. para abastecer os camelôs da capital. Também trazia na bagagem, palhas, penas, bambus, cipós e outras matérias primas para servir ao atelier de sua mãe.

Praticamente aposentado, Joari mudou-se para viver seus anos finais naquela comunidade. Ali, ainda tinha parentes e amigos que muito lhe admiravam e eram gratos. Foi ele quem fundou e fez funcionar a primeira escola primária na vila. Entre os ensinamentos, incentivava a aprendizagem da história dos povos indígenas Tucano e Aruak, do bom relacionamento interpessoal e do respeito ao meio ambiente. Embora a aldeia não conservasse o formato social tribal, Joari era tratado como um cacique. Pois, além de tudo, sabia cantar e conduzir pajelanças e outros ritos religiosos de seu povo.

Joari historiava suas aventuras, em estilo professoral. Sentava-se num tronco escavado em forma de poltrona de frente para uma grande fogueira. A seu lado, quatro assentos vazios, dois à esquerda e dois à direita. Enquanto falava, movia a cabeça e corria o olhar para os assentos laterais como se submetesse suas palavras à confirmação de pessoas ali presentes.

- Não sei se por efeito do cauim ou do sono, em determinado momento cheguei a ver imagens difusas de índios com seus cocares ocupando aqueles assentos - disse Alfredo.

Curioso foi quando Joari se levantou para narrar sobre a grande festa promovida pela tribo para alegria do espírito de Gabuá, grande guerreiro, morto ao tentar impedir a atuação de garimpeiros em suas terras. “De Gabuá, só se fala em pé!” Solenizou seu discurso. Enalteceu os valores guerreiros dos defensores dos rios e das matas. A entrega à luta contra os destruidores do meio ambiente etc. Terminada sua pregação, Alfredo disse ter tido a impressão que Joari se jogara para o interior da fogueira, produzindo um grande facho de fagulhas douradas enquanto todos ficaram imóveis de pé, inclusive as figuras difusas que ladeavam Joari. Por curto tempo, sem Joari, cantaram e dançaram em círculo ao redor da fogueira, até que desabou tempestade, acompanhada de raios e trovoada.

- Não vi mais ninguém. Tampouco Joari. Apenas uma grande nuvem de fumaça, deixava a fogueira, já negra em carvão. Aparentemente todos se recolheram em suas casas sobre palafitas. Com a visão embaçada, tateando, voltei à minha embarcação. Dia seguinte, parcialmente descansado, segui viagem até Barcelos, de onde voltei três dias depois. Parei na mesma comunidade, procurei por Joari. Responderam que ele fora levado pelo espírito de Gabuá nas labaredas da fogueira em grande festival de fagulhas.

Alfredo ainda contou outras aventuras e lembranças de suas experiências de vida em contato com os povos Tukano e Aruak, ribeirinhos do médio e alto Rio Negro.

Regressamos a Manaus para retomar, dia seguinte, nossa reunião sobre esforços de pesquisa no tropico úmido. Era tardinha de domingo. Sol se pondo sobre lindas e mansas águas negras.

Ainda com tempo, passamos na feira de artesanato, ainda aberta, que fica na Praça Tenreiro Aranha, próximo ao porto. Surpreendeu-nos uma ampla e bem montada tenda intitulada Atelier JOARI ARUAK, especializado em produtos artesanais de povos indígenas ribeirinhos do médio Rio Negro. Paramos por lá examinando as artes expostas à venda e lembrando do que ouvira na viagem com Alfredo. Não resisti. Comprei uma miniatura de fogueira entalhada em madeira sustentando o busto esculpido de Joari, para jamais esquecer a aventura que me foi contada.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 26/05/2018
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