A força do símbolo – e o seu limite

Numa segunda feira gorda de setembro pego o metrô na zona leste [1] . Sigo pensando em minha infância na roça, enquanto procuro dois lugares mínimos, um no chão para pôr os pés e outro na barra de apoio para a mão. Eu e mais o mundaréu de gente seguimos pendurados, feito carne no açougue.

Não tirávamos muito leite e tínhamos apenas algumas vaquinhas. Ainda me lembro de uma que se atolou no brejo e teve de ser sacrificada, coitada. O sítio do meu pai era pequeno, mas na vizinhança havia fazendas, grandes retiros de leite. Às vezes eu via caminhões levando a boiada para a cidade, para o abate. Aquele sacolejo, os esbarrões, a poeira, os olhos dos bois perdidos na paisagem que passava, igual aos diversos, agora, que se perdem nas colunas de cimento do túnel do metrô.

Chego ao Braz. É a visão do inferno. Antes de a porta abrir, cada um já procura se defender como pode. Firma o pé, vira o ombro, segura com mais força na barra. A porta se abre... É o fim dos tempos!

Quando o capataz da fazenda abria a porteira que dava acesso ao outro pasto, a boiada entrava se atropelando. Meu pai dizia que a cerca, pra ser boa, tem de ser bem feita. A gente sabe que a força do boi é muito maior que a resistência da cerca. Mas ele não a pula; acostuma-se; cria o símbolo da cerca; internaliza o mandamento “Não pularás!”. Mas basta que um boi perceba uma passagem na cerca e se arrisque a rompê-la e pronto! Ainda mais se a boiada estiver acuada, sob pressão ou risco. É o estouro. Coisa linda da natureza, a classe bovina se organiza em segundos. Haja capatazes, cavalos e paulada no lombo para fazê-la voltar ao curral. Pode até voltar, mas briga até o fim.

Estação Sé. Não saio do metrô: eu sou saído à força. Vou pro Jabaquara, mas ao descer as escadas vejo um mar de gente que me desanima. “Impossível viver num lugar desses!”; a velha frase que ronda minha cabeça desde o primeiro dia que troquei as serras de Minas pela fumaça paulistana.

À noite, a mesma coisa. Com a agravante do cansaço do dia. Voltamos pendurados e cochilando em pé, quais bois que dão trabalho para subir no caminhão, e do cansaço de lutar, quando são colocados ali, resta-lhes fechar os olhos e deixar o sacolejo embalar um cochilo melancólico.

Um pouco abaixo da linha do metrô, enquanto fantasio uma fuga pela janela de vidro, querendo um pouco de calma e silêncio, vejo lá embaixo na rua uma fila de pessoas esperando para ganhar um prato de sopa e um pedaço de pão. Vida de albergue é parecida com a de gado de segunda, que o caminhão não leva por não dar peso de venda. Na fila da sopa não são tantos como dentro dos vagões; são magros, fracos, como as nossas vaquinhas do sítio. Quando eu, à tardinha, ia colocar ração no cocho, elas vinham, lentamente, pasto afora, para receber o trato e ruminar sua vida fadada pelo resto da noite.

“Afinal, o que nos diferencia dos bois?”, pergunto-me, ao conseguir um pouco mais de espaço quando, no Braz, metade do público desce, na transferência gratuita a outros caminhões. E me assusto por ver que apenas uma coisa nos distingue: o número de patas.

Somos tão semelhantes que, um dia, num descuido dos capatazes, alguém de nós perceberá uma passagem na cerca, e forçando-a, descobrirá que ela é muito menos resistente do que parece: ela é um símbolo, um mandamento assumido. O primeiro passará, o terceiro, e, em segundos – coisa linda da história – será o caos.

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1. Acontecências refletidas nos tempos em que, fazendo o roteiro costumeiro da população do nordeste mineiro, migrei para São Paulo.

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 27/05/2018
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