DÁRIO E SEU REFÚGIO

Dos cafezais de Rio Claro aportou em Brasília, Dário, cidadão meio alto, fisicamente bem formatado, de rosto fino e extremamente simpático. Era o xodó das meninas que compunham a turminha da Vila Planalto, em Brasília, nos início dos anos sessenta. Sua fina aparência caucasiana escondia uma pessoa de cultura e hábitos bastante rudes. Dário era matuto e socialmente grosso, mesmo.

Atraiu, com seus encantos físicos, uma linda moça, Maria Lídia, de gestos finos, sempre bem vestida. Mineirinha conservadora, filha de um engenheiro da Construtora Rabello. Namoro permeado de términos e reinícios. O primeiro fim, contado por Maria Lídia, ocorreu sob uma exuberante lua cheia. Ela, cheia de poesia e amor, admirava a névoa que se formava sobre o Lago Paranoá. Ensaiou até alguns versos. Dário olhou para o céu e puxou Maria Lídia pelo braço, apontou a lua e disse: “olha lá, mulher, o cavalão de São Jorge no meio daquele queijo”.

Quando as moçoilas ficavam sabendo do término de seu namoro, promoviam um assanhamento geral. A notícia fazia parte até das fofocas divulgadas no jornal comunitário “O Pagão”. Periódico mimeografado mensal. Vez por outra, concebido em edição “extra”. O Pagão, sem patrocinadores, com limitado número de exemplares, tinha leitura aguerridamente disputada na comunidade.

Voltando ao Dário, registre-se que, apesar do tumultuado namoro e noivado, terminou casando-se com Maria Lídia em igreja abarrotada pela comunidade.

Não deu certo! Passado um ano, Dário em conversas reservadas, sempre se queixava da esposa, alegando que Maria Lídia não correspondia nem um pingo a seu amor por ela. Apesar disso, nunca pensara em separação.

Contou que, à noite, no leito conjugal, não era lembrado sequer para um “boa noite”. Deitado, apenas sua imaginação o confortava. Como que sonhando, era levado a um lugar formado por duas grandes avenidas a contornar imensa praça arborizada. Plena de pássaros canoros, aves coloridas e pequenos animais no solo e sobre as copas. Na sua caminhada, avançava sob as sombras das árvores, geralmente a exibir flores de todas as cores. Via muitas pessoas. Sempre gente muito bonita, perfumada e bem vestida. Ninguém conhecido.

Estranhamente, não lhe ocorria curiosidade nem ímpeto de aproximar e dialogar com essas pessoas.

Igualmente estranha era a impecável limpeza das ruas e a ausência de veículos. Nenhuma bicicleta. Nem mesmo um carrinho de mão. Alguns cidadãos de bengala, mas ninguém em cadeira de rodas.

Esse exuberante bosque urbano, em terreno extremamente plano, terminava na frente de uma igreja, sem escadarias de acesso. Aliás, observando bem, todas as casas estavam ao rés do chão, sem escadas nem batentes. Tampouco ressaltos.

Dário descrevia seu sonho com fantástica riqueza de detalhes. Acrescentou que, mesmo sem se sentir cansado, costumava sentar-se num banco de madeira de onde visualizava o interior da igreja através de suas grandes portas, sempre abertas. Não se lembrava de ter visto, em qualquer momento, pessoa a entrar ou sair do templo, mas sentia que havia gente lá dentro, pelos sons musicais e cantos que de lá lhe chegavam aos ouvidos.

Segundo ele, ainda sentado no banco, costumava adormecer e acordar já dia seguinte na sua cama, ao lado de sua esposa, sem bom dia nem afagos. Era sonho que se repetia com muita freqüência. Tentou contá-lo à Maria Lídia, por várias vezes. Mas, sempre desistia ante seu completo desinteresse.

Eu, Armando e Assis formávamos sua audiência. Sempre ao fim de uma vesperal regada a Campari e cerveja, no salão do Clube Rabello. Assis, com sua verve de escritor, chegou a pensar traduzir em letras essa inusitada fantasia, contada por um cidadão supostamente pouco afeito à poesia e às belezas naturais.

Fazia quase um semestre que acompanhávamos o desenrolar e a evolução dessa história. Muito repetitiva no geral, mas permeada de curiosos e interessantes detalhes, a cada tempo. A evolução mais significante percebemos quando Dário, depois de tanto tempo, disse ter conseguido se comunicar com as pessoas que habitavam a praça. Relatou ter adotado a iniciativa de conhecer melhor aquelas personagens, por inexplicável vontade própria, sem envolver curiosidade.

Surpreendeu-se ao saber que todos eles também escapavam em sonho de suas dificuldades para se refugiarem naquele local. E mais: que muitos deles jamais despertaram e por ali faziam a continuidade de suas vidas.

Dias após fazer-nos tal revelação, fomos convidados a participar do velório de Dário. Faleceu dormindo, declarou sua esposa, já viúva.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 29/05/2018
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