O JOGO DE CARTAS

Nélio saiu de casa cedo, tinha de ir ao armazém comprar os mantimentos a mando da mulher. O pouco que tinha amarrado à ponta do lenço mal dava para o mínimo necessário para alguns dias. Tinha na lista de cabeça a farinha, o sal, o melado e um naco de fumo, visto que também era filho de Deus.

Andou alguns passos e encontrou o homem que foi sua perdição. Convidado a ir até o bar tomar uma pura, não recusou, se Deus permitiu que se inventasse a danada era porque lhe permitia estes deleites.

Tomou a primeira na conta do desconhecido. Foi o necessário para despertar o vício e pedir mais outra. De copo em copo, sentiu-se corajoso, o maior de todos os homens da terra.

Esqueceu as quimeras da vida triste e limitada em que vivia, os dissabores que passava em sua rotina sofrida de homem do campo, de peão sem rumo, das dificuldades que enfrentava para fazer aquilo que era comum e banal à todos os outros. Já falava em voz alta com autoridade. A cachaça fizera-o um vencedor.

Chamou-lhe a atenção a gritaria em mesa ao lado onde rolava nervoso um cinquilho, jogo de cartas tentador que em sua ilusão depois de três copos de canha o tornara mestre.

Mentalmente calculou o que tinha no bolso e o quanto poderia levar para casa se fosse afortunado com uma boa mão. Sentou-se à mesa e pediu cartas.

Maldita hora. Seu raciocínio o enganara.

Algum tempo depois, bêbado, sentado na beira da estrada em frente ao bar, sem dinheiro algum matutava o que dizer para a mulher. Que tinha sido roubado? Que havia comprado uma garrafada para Seu Oscar, velho doente que sempre necessitava da ajuda de quem lhe oferecesse? Não era de mentir

Que perdeu no carteado?

Homem rude, afeito ao trabalho pesado. Nunca precisou de um raciocínio afiado. Cabia-lhe na fazenda o trabalho duro que requer mais força que pensamento. Assim era a vida de peão. Marcava um boi com desembaraço, casqueava um tordilho com a destreza de um cirurgião, esticava uma cerca com a maestria de quem afina uma viola. Esta era sua vida.

Desde pequeno viveu nesta lida. Por nunca ter sentado num banco de escola as letras para ele eram símbolos estranhos e desnecessários ao seu pequeno mundo.

Mais uma semana de miséria e privação não era o que mais lhe preocupava visto ser bem esta sua rotina, mas o olhar de decepção e desgosto da mulher, a vergonha, quando chegasse e contasse a desgraça.

Levantou-se, andou a passos indecisos em direção a sua casa, os efeitos etílicos da bebida dissipavam-se trazendo-o de volta a realidade e a seu tamanho real.

O fato já estava consumado, bastava agora enfrentar suas consequências.

Lentamente seu vulto foi sumindo pela estrada empoeirada, desaparecendo aos pouco ele que não era quase nada, menor ainda se sentia, apenas um insignificante ser em busca de respostas e desculpas.