Mosaico

Ana gosta do feriado. Ficar quatro dias e meio longe da alienação daquele cartório sem vida é o que mais a atrai. Na sexta-feira, ela passa no supermercado para abastecer seu cativeiro, de onde só sairá na quarta-feira. Ela não quer correr o risco de esbarrar com a felicidade alheia. Lê o mesmo livro pela terceira vez. Pela fresta da persiana, ela espia o Vale do Anhangabaú, e sente um pouco de inveja daquela alegria exagerada. Mas não admite, acha que nasceu no país errado. A ideia de ser diferente da maioria é o confete que ela atira em si mesma. Ana torce para que chova, e que a enxurrada leve para o bueiro esses ratos de abadá. Ana gosta de Beatles, silêncio e artigos domésticos. Não gosta de cerveja porque é amarga demais, a Ana.

Cléo gosta de conversas profundas e cinema iraniano. Ela aproveita os dias de folga da escola de ioga em Pinheiros para ir ao Cine Belas Artes se alimentar de cultura. À noite, ela bebe uma taça de vinho do Porto, prepara uma massa e põe a mesa para dois: ela e a solidão, que chega de máscara e fantasia. Desliga a TV. Ela tem uma coleção de vinis empoeirados. No inverno é jazz, no verão é bossa nova. Gosta do Carnaval glamourizado, cheiroso, poetizado nos versos de Chico, abençoado por Iansã. Banho de cheiro, banho de chuva. Brasilidade barquinho, violão e carimbó. Brasil com alecrim. Belchior, América Latina. Pobre, preto e favelado. Leblon. Samba, sambinha, Sambô, Ivan Lins. Cléo gosta do povão, na literatura.

Vinícius gosta de sertanejo universitário, bunda e Velozes e Furiosos. Veste uma regata. Enche os bolsos de coragem, camisinha e Engov. Desce na estação errada. Vai a todos os blocos de rua que conseguir com seus amigos igualmente equipados. Enche o cooler e o saco. Cheira cangotes e cocaína. Toma catuaba e tapa na cara. Fica bêbado. Vomita na rua. Mija no muro. Transa no quintal de uma senhora na Vila Madalena. Apanha. Vai para a delegacia. Chama o pai. Assina um termo. Volta para a casa. Acorda cedo no dia seguinte. Veste uma regata.

Eu gosto do feriado. Ficar quatro dias e meio me alimentando de massa com alecrim, fantasia e solidão é o que mais me atrai. Na sexta-feira, visto uma regata. Encho a cara de coragem e vinho do Porto. Fico bêbada. Tomo um Engov. Desligo a TV, sinto um pouco de inveja daquela bunda exagerada. Acho que nasci na estação errada, no inverno. Escuto o mesmo disco dos Beatles pela terceira vez. Fico em silêncio. Fico em Pinheiros. Não quero correr o risco de esbarrar com o Vinícius. Espio pela fresta da persiana e atiro confetes para a felicidade alheia. Torço para que chova. Tomo um banho de chuva, e que a enxurrada leve para o bueiro a ideia de que terei de acordar cedo no dia seguinte. Gosto de Carnaval porque é amarga demais, a vida.

Vanessa A
Enviado por Vanessa A em 08/06/2018
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