Silva goes to Moema

Como toda assalariada que se dá o devido respeito, só vou ao médico quando a empresa paga. Passado o período de experiência na firma, fiz cirurgia refrativa, e hoje vejo até o que eu não quero, perdi o juízo no bucomaxilo e, tentando reparar 26 anos de danos, fiz 2 horas de análise.

Todos os consultórios pelos quais passo têm algo em comum: ficam em regiões abastadas de São Paulo. Como toda pobre, tenho alguns complexos mal resolvidos de vira-lata, e imagino que um consultório em Osasco não tenha o mesmo cuidado de um no Jardins, que tem Villa-Lobos de som ambiente e chá de hibisco na recepção. Mesmo eu achando ambos uma desgraça, faço valer meu desconto mensal em folha e marco presença nos ambientes clínicos frequentados pela elite paulistana.

Para não ficar evidente o contraste de classes, eu acordo sempre mais cedo para tomar banho, coisa que jamais faria num dia normal, coloco a famosa roupa de sair, passo a amostra grátis do perfume importado que ganhei num sorteio e tiro o barro do sapato para me deslocar - de ônibus, trem e metrô - para os bairros depois da ponte. O meu disfarce quase nunca é descoberto, e eu consigo fazer a mesma cara de entojo das madames, como se estivesse em meu habitat natural.

A primeira pergunta da recepcionista quando você chega a um consultório com escada de mármore é: “Precisa do ticket para o estacionamento?”, e eu sempre aceito de bom grado para alimentar o acervo da minha coleção pessoal, embora preferisse minha parte em créditos no Bilhete Único. Depois vem a temida hora do cadastro. Eu sempre falo bem baixinho o meu CEP, mas na hora de dizer a profissão, eu invento coisas exóticas, tipo paleontóloga, professora de yoga, biomédica, youtuber... e a atendente digita aquilo com a naturalidade e tédio de quem está ouvindo mais uma sinfonia de Villa-Lobos, dando o total de zero importâncias ao meu fake glamour.

Na sala de espera de um consultório em Moema, no entanto, enquanto eu disfarçava o cansaço pelo êxodo rural de 2 horas, com as pernas cruzadas e postura reta, as dondocas se organizavam em fila à frente da máquina de cappuccino, abriam o pote de bolacha cream cracker e enchiam a mão, tomavam 13 copos de água, cada hora com um copo descartável diferente, apertavam todos os botões do filtro para ver o que cada um fazia, mas mantinham aquele ar de pertencimento, como se estivessem em seus próprios apartamentos em condomínio com academia que ninguém usa porque é inclusa no condomínio.

Fiquei levemente decepcionada em ter perdido tanto tempo tentando passar despercebida, mas feliz por ter conseguido manter a pose e um patamar acima das mortas de fome do Itaim Bibi. No entanto, quando começaram a chamar os nomes para a consulta, a divisão ficou evidente. Parecia que apenas um sobrenome imponente livraria do tribunal da postura cafona qualquer dondoca. Obviamente, quem nasce no Sírio Libanês e tem no registro um sobrenome de rica pode ficar na fila da bolacha à vontade, pois esse aval é expedido, carimbado, rubricado e reconhecido em cartório pela associação das comadres quatrocentonas. Já eu, uma Almeida que omite o Silva do meio em ocasiões excepcionais como essa, tem mais é que se esforçar para disfarçar a cara de quem usa pregador de roupa para fechar o saco de arroz.

E a chamada continuava: "Claudia Bittencourt", e levanta uma múmia de laquê. "Cecília von Wulffen", e passa desfilando a dona de metade do quarteirão de Higienópolis... "Carola Schinaider"... "Alice Löhnhoff"... parecia um teste de elenco para a nova temporada de Keeping up with the Kardashians. As minhas mãos já começaram a suar. Eu, uma Silva, que até então estava fantasiada de eleitora do João Dória, prestes a ser desmascarada, arquiteto a brilhante ideia de me levantar com pressa ao ouvir meu primeiro nome, para que a médica logo percebesse a minha presença e não tivesse tempo ou necessidade de pronunciar meu sobrenome de sindicalista do ABC.

Ao ouvir “Vane...”, levanto rapidamente e me dirijo ao consultório tal qual uma bala perdida, deixando cair no chão o ticket do estacionamento. Quando me abaixo para pegar o ticket e a dignidade, caem na minha cara os meus óculos de Lolita da 25 de Março, que estavam estrategicamente posicionados na cabeça, tropeço no degrau de mármore e olho para a médica, que completa em alto e bom som: “VANESSA DA SILVA?”. Eu balanço a cabeça afirmativamente e penso: “O que você acha?”

Vanessa A
Enviado por Vanessa A em 08/06/2018
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