Não sei flertar

Na minha última viagem, fiquei hospedada em um hotel em San Francisco numa rua conhecida por ser o maior reduto gay da cidade. Fiquei no quarto 211, e depois de largar minhas coisas, abrir os armarinhos e furtar algumas amostras de xampu, fui pedir dicas ao recepcionista do estabelecimento para turistar com alguma dignidade. O cara era lindo! Olhos azuis, pele de nenê, barbudo, alto, ruivo, e apesar de padrão, tinha charme e simpatia de sobra, algo difícil de encontrar nos comedores de donuts, convenhamos. Ele era solícito, me mostrou no mapa onde eu deveria ir, mas eu não consegui prestar atenção em nada, estava hipnotizada pela beleza daquela fuça norte-americana. Rapidamente me ocorreu que ele estava sendo simpático porque me queria, uma pretensão que depois deu lugar à lembrança de que ele não estava fazendo nada além do trabalho dele.

Iludida, saí pisando em nuvens e me perdi na cidade. Importei um costume muito comum e cotidiano pegando o ônibus errado. Tropecei em um cara que estava claramente tendo uma overdose. Corri de um maluco que falava sozinho e gritava. Tive que pegar meu cu do chão depois de, a muito custo, conseguir convencer um cara extremamente convicto de que eu não era uma policial à paisana. Mas só conseguia pensar que a minha desgraça foi aquele zóio azul. Voltei para o hotel e o lindo, simpaticíssimo, me perguntou com todo o interesse do mundo como tinha sido o meu passeio. Eu poderia fingir, dizer que as dicas dele foram ótimas, mas falei que estava assustada com tanto mendigo, maluco e drogado. Ele riu. Ponto pra desajeitada bem-humorada que fisga o boy porque é engraçada, até porque se dependesse do meu poder sedutivo eu estaria fo-di-da.

Em seguida, ele perguntou o número do meu quarto. Com meu vocabulário viciado, limitado e mequetrefe, em vez de responder “Two Eleven”, respondi “Nine Eleven”, o famigerado “onze de setembro”. Ele arregalou aquelas duas safiras e desferiu a mim um OH MY GOD! que entrou pelos meus ouvidos voando na nave do Neil Armstrong e fincou a bandeira dos confederados no meu âmago. Eu pedi desculpas no ritmo do hino nacional americano. Passei pasta de amendoim no sanduíche dele. E me dei um tiro com uma espingarda que comprei no Walmart. Ele, espirituoso, notando o meu constrangimento, deu uma gargalhada que me confortou. Depois, o namorado dele chegou perguntando o que era tão engraçado. Eu fui cabisbaixa pro meu quarto, two eleven, dormir de conchinha com a paranoia que eu criei.

Em outra situação, eu estava no trabalho, e era época de Natal. O cara da Logística vivia jogando a famosa conversinha mole pra cima de mim. Ele me chamava de ruiva (héteros têm dessas, acham que estão te fazendo um elogio quando na verdade estão apenas fazendo uma constatação óbvia sobre alguma de suas características, vide “morena”, “loirinha”, “cheirosa”, etc.). Sorria pra mim no corredor e piscava, pegava no meu ombro e apertava, pra eu sentir a famosa pressão. Até que eu decidi retribuir o agrado diário jogando uma isca, só por diversão. Deu errado demais!

Recebemos um e-mail dizendo que deveríamos ir até a Logística pegar a nossa cesta de Natal. Olha aí a oportunidade batendo à caixa de entrada. Desci até lá ajeitando o sutiã pra ver se dava mais volume. Imaginei que eu fosse sentar na mesa dele e cruzar as pernas e passar os dedos entre os cabelos, fazendo bola de chiclete, igual uma professora gostosa do ensino médio. Mas entrei pedindo licença, limpando os sapatos no tapete, mostrando toda a educação de caipira que Dona Cida me deu. Ele estava sentado, com as pernas entreabertas, confortável demais em sua poltrona de segurança heterossexual, enrolando os cachinhos, e sorrindo maliciosamente pra mim.

— Oh, ruiva! Tudo bom?

— Tudo, e você? Vim buscar minha cesta… :)

— Ah, não vou te entregar não, rs.

E agora? Senti que a tentativa de brincadeira era uma oportunidade para eu aplicar algum magnetismo. Eu poderia responder qualquer coisa, tipo: “ah, então eu não vou sair daqui” (e sentar na mesa, cruzar as pernas e alisar o cabelo!?), ou, “vou buscar nem que seja na sua casa”, dar uma de louca mesmo, isso intimidaria o cara, mas ele ia ficar pensando nisso o fim de semana inteiro. Mas preferi apelar de novo para a joselitês, e respondi, enfática:

– Pô, eu quero os meus TORRONE!!!

Por que caralhos eu resolvi falar a palavra mais feia da língua portuguesa num momento desses? Não sei, sei que ele deu risada. Depois, eu só queria salvar qualquer possibilidade de continuar o flerte, para não me desmoralizar ainda mais na frente de todas as minhas expectativas que estavam me assistindo na plateia, gritando em coro ELA MERECE depois de eu levar uma tortada da vida.

O cara me deu uma lista para assinar. Tive que mentalizar muito para não errar meu próprio nome e escrever Torrone da Silva Almeida. Até que ele entregou a cesta pra mim, deixando sua mão resvalar na minha. Acho que dentro da caixa, além do panetone, biscoito champagne, torrones e lata de pêssego em calda, estavam todas as vergonhas que já passei na vida. Ô caixa pesada da porra!

Ele viu que eu estava roxa, me contorcendo, carregando o Jô Soares depois do rodízio, e perguntou se eu queria ajuda para levar a caixa. E eu, em vez de aproveitar e tirar alguma vantagem do título que morreu nos anos 90 junto com a gíria “irado”, “sexo frágil”, e estender até a minha sala uma conversa que já havia começado errada, disse que não precisava. Levantei o Péricles e saí, com as pernas flexionadas, tremendo, tortas, arrastando a cesta de Natal pela empresa inteira igual uma filha da puta.

Em casa, eu abri a cesta e a primeira coisa que vi foram os tabletes de torrone. Abri um deles e, enquanto limpava a mão suja de amendoim no meu moletom do Garfield, acessava pelo celular um teste de revista adolescente.

Teste: “Você é uma pessoa que não sabe flertar?” Meu resultado foi: 9… de 11.

Vanessa A
Enviado por Vanessa A em 09/06/2018
Reeditado em 09/06/2018
Código do texto: T6359395
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