Hemodrama

Quando perdi meu primeiro dente de leite, aos 6 anos, fiquei alguns minutos em estado de choque. Eu estava pálida e ofegante, sentada no vaso sanitário segurando aquele pequeno pedaço de osso ensanguentado. Minha mãe não me tranquilizou com a história da fada do dente, mas fez pipoca, colocou poltronas reclináveis em frente ao banheiro, chamou todas as vizinhas do prédio e distribuiu óculos 3D para que as comadres apreciassem e aplaudissem o maior espetáculo dramático do bairro: eu.

O maior trauma, na verdade, era ver sangue jorrar. Quando menstruei pela primeira vez, gastei três pacotes de absorventes para as minhas lágrimas. Demorou algum tempo até eu descobrir que sofria de uma síndrome rara chamada hematofobia, um termo médico inventado para que você, pessoa frouxa, tenha escudo técnico para se proteger de chacotas quando a sua pressão cair porque viu uma fratura exposta.

Essa aversão a sangue se transferiu para agulhas. A associação com o exame de sangue era inevitável. O evitável era me machucar, mas não conseguia escapar das armadilhas de Zé Gotinha, um membro infiltrado da Ku Klux Klan, de sorriso sádico, que se encarrega de torturar crianças latinas com agulhas em vez de pingar líquido doce em suas línguas. Hoje, adulta, consigo lidar bem com a situação. Em 2010, por exemplo, então com 19 anos, precisei me curar de uma crise alérgica. Depois de muitos anos sem pisar em uma enfermaria, meu cérebro se encarregou de resgatar e reproduzir a memória comportamental de uma criança de 8 anos.

Na sala de aplicação, fiquei de frente para o enfermeiro, que ficou olhando para mim como se dissesse: “É na bunda, querida. Amostra logo essa mixaria que meu plantão acaba às dez”. Como eu não tive reação, ele confirmou: “Vanessa, é no bumbum…”. Eu me virei e abaixei as calças e a calcinha ATÉ O CHÃO. Quando estava subindo, me dei conta que a dignidade também havia ficado lá embaixo, mas já era tarde, o enfermeiro aplicou a injeção e eu sequer senti, porque vexame libera endorfina. Ele saiu sem falar uma palavra, me deixando com a bunda inteira de fora. Nem quero saber o que ele escreveu no meu prontuário.

A última vez tirei sangue ganhei um pirulito da enfermeira. Porém, nesse último fim de semana, em jejum de 12 horas eu quebrei um jejum de mais de 17 anos sem ter uma agulha perfurando minha carne. Tinha tudo para dar errado, e deu! Na sala de coleta, eu estava confiante e tranquila, mas os questionamentos e advertências da enfermeira puseram em cheque toda a minha valentia: “São 7 tubos, nossa, é sangue pra caraaaalho!…”.

No primeiro tubo eu estava feliz porque a única dor que estava sentindo era a da borracha apertando meu braço. No terceiro, porém, eu já estava performando Cleópatra, com a enfermeira, que definitivamente não é paga para isso, me abanando com a minha guia de autorização de exame. No quinto, eu estava torta na cadeira, ofegante, delirando e preocupada que a frase da minha camisa, “Go to hell”, passasse a impressão de que eu era uma designer alternativinha que faz yoga, come frutas secas e se demite para fazer mochilão na Europa. No sexto tubo eu achei que seria a próxima integrante do clube dos 27, de morte emblemática, com uma seringa na veia, e a única heroína seria eu mesma, que consegui concluir um hemograma completo. Cheguei ao sétimo tubo sem desmaio e sem plateia.

A caminho de casa, porém, recebo a ligação do laboratório me dizendo que precisaria repetir os exames, porque a enfermeira trocou uma das etiquetas com a de outro paciente. Catarse! Na hora pensei em chegar no laboratório entregando o meu coletor menstrual para a atendente, mas querendo ou não, resiliência sempre foi a minha maior virtude. Confirmei para o próximo sábado e desliguei o telefone com apenas uma expectativa: espero que desta vez eu ganhe um pirulito.

Vanessa A
Enviado por Vanessa A em 11/06/2018
Código do texto: T6361751
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.