ALTERAÇÃO

“Alteração” era como se conhecia o jovem mais irritado de Teófilo Otoni/MG. Desnecessário explicar o apelido. Pavio curto, quase no zero. Brincadeira com ele tinha que ser pensada e repensada previamente. Engrossava por quase nada. E - não raro - partia para a agressão física ou para o desafio do embate corporal, sob xingamentos. Melhorou muito já na terceira idade. Mas, ainda representa perigo. Continua sendo um siri dentro da lata, dizem seus poucos amigos e conhecidos.

Com meus doze anos e ele, um par de anos mais velho, costumávamos sair juntos com caixa de engraxate no ombro. Buscávamos fregueses nas imediações do Cine Vitória e Bar do Ferraretto - em Teófilo Otoni. Também marcávamos presença nas entradas do Grande Hotel e do Rex Hotel, especialmente quando ficávamos sabendo da presença muitos hóspedes. Aprendi a não irritá-lo. Até mesmo a acalmá-lo em seus surtos. Falávamos a língua do trás para frente ou “s’trá rapa tífren”. Ou seja, invertendo as sílabas das palavras, obedecendo mais à fonética que ao rigor da grafia. Era o modo de camuflar nosso diálogo em público. Especialmente quanto à formulação do preço da graxa, “de acordo com a cara do freguês”. Ou mesmo de molecagem só para deixar a ver navios os “leigos no dialeto”.

“Alteração” ou “Sãorateal” era meu amigo, de verdade. Demonstrou isso nos momentos em que me vi ameaçado por provocadores de arrelia. Em compensação, eu lhe emprestava gratuitamente apoio às suas razões, ainda que não concordasse plenamente.

A propósito, lembro-me de um baile de carnaval juvenil no Clube Libanês. Altos da esquina da rua das Flores com a Getúlio Vargas, defronte ao Automóvel Clube. Nem sei direito quem nos colocou lá dentro. Divertíamos em grande alegria com marchinhas, frevos, serpentinas e confetes. De repente, fomos surpreendidos com a covardia praticada por um dirigente ou segurança do Clube. Aos gritos de “bra fora neguinha bobre”, expulsava aos empurrões, escada abaixo, duas crianças negras.

Alteração não pensou duas vezes e partiu para cima do “segurança”. Tomou na marra um frasco de lança perfumes de alguém descuidado e mirou bem no olho do agressor. Prejudicado na visão, foi fácil cobrir-lhe de tapas - incluindo com os por mim aplicados. Saímos correndo, antes da chegada de um possível reforço institucional. Encontramos as meninas na Ponte da avenida Beira Rio (hoje Dr. Luis Boali), ainda aos prantos, soluçando e lamentando sua condição de indesejáveis naquele ambiente. Nem adiantara ter vestido sua melhor roupa para brincar o carnaval. Consolaram-se quando lhes contamos sobre a sova aplicada no agressor do Clube. Fizemos-lhes companhia até sua casa, no Arrasta Couro.

Passada uma década, retornei a Teófilo Otoni para visitar a família de meu irmão Oldemar. Não consegui ver meu amigo “Alteração”. Mas, soube que pouco mudara em seu comportamento, mesmo tendo passado por um histórico vexame.

Fora, com seu time de amigos – Ypiranga - jogar futebol em Araçuaí. Ônibus, tipo jardineira, alugado pela Prefeitura. Hospedaram-se numa pequena pensão de quinta categoria, com direito a refeições, custeada pelos patrocinadores do torneio de futebol de várzea dos vales do Mucuri e Jequitinhonha. Na entrada já deixou sua marca de grosso. Respondeu com muxoxo o “boa tarde” do porteiro proprietário, mas exigiu, sem a mínima polidez, um aposento no andar superior.

O jantar – servido pela única garçonete, filha do proprietário - era precedido por sopa, acompanhada de pão de sal. Na molecagem coletiva, instaurou-se a brincadeira de jogar miolo e migalhas de pão um no outro. Não tardou se voltar o alvo para a linda e simpática adolescente garçonete. Logo vieram os assédios: “linda”, “flor do meu jardim”, “casa comigo, boneca”, “vou pensar em você no banheiro” etc.

A moça não gostou e se manifestou incomodada a seu pai. Cabra grosso e impaciente, não demorou a pegar seu revólver 38 e, chutando cadeiras, quebrando pratos e copos, mandou todos se encostarem à parede do refeitório. Passou um sabão geral na galera esfregando o cano da arma na cara de cada um.

“Alteração” estava ausente, atrasado em razão de ter sido o último no banheiro coletivo. Sem saber do que se passava, mas, tendo ouvido a algazarra e a zoada, já chegou falando alto e grosso:

Que zorra é essa?

O dono da pensão armou o gatilho e apontou-lhe a arma na boca. Disse-lhe a menos de palmo, cuspindo maribondos e perdigotos:

- Aqui quem manda sou eu! Vou colocar uma bala na sua boca para acabar com sua petulância, seu bosta! Encoste-se na parede já! Entendeu ou quer ser o primeiro a ir pro inferno?

Alteração amarelou, mal se aguentando nas pernas. Limitou-se a responder em voz fina e trêmula, nunca dantes ouvida daquela boca:

- Inhôôôô, sim sinhôôô. Eu não estava aqui não. Nem sei do que se trata.

- Cale a boca, verme covarde!

E assim ficou abortada a participação do Ypiranga no torneio, retornando todos naquela mesma noite, a Teófilo Otoni.

Esse episódio deixou “Alteração” quase manso e meio ausente das ruas por algum tempo. Porém, durou só o prazo necessário para que ele arquivasse o episódio na caixa do esquecimento e voltasse a impor suas alterações.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 16/06/2018
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