Quilates

Um desses programas da tarde que a gente só assiste quando falta no trabalho fez uma matéria sobre um casal de velhinhos que comemorava bodas de diamante, a pedra preciosa escolhida para simbolizar uma relação de 60 anos. Perguntados pela apresentadora sobre o segredo de uma relação tão duradoura, os dois se olharam sorrindo, buscando nos olhos do outro a confirmação do que eles já sabem de cor. Meio tímidos, lacônicos, disseram: “o amor”. Já logo torci o bico.

Os aplausos e gritos da plateia, o olhar terno dos velhinhos e a total falta de faro investigativo da apresentadora decretaram o fim de uma entrevista que poderia indicar o mapa da mina de diamantes para nós, meros mortais com certificado de conclusão de relacionamento Miss Colômbia. Não é que eu não me emocione com o amor, tampouco não sinta inveja do aparente sucesso monogâmico alheio, mas acho improvável que 60 anos possam morar numa palavra de quatro letras, tão rasa, inexpressiva, inconclusiva. Fosse eu a apresentadora, refutaria essa declaração irresponsável com ciência, que é quase tão amargurada e cética quanto eu. Para ela, amor tem nome: ocitocina, um hormônio que, quando produzido em escala elevada, faz você se apaixonar pelo primeiro imbecil que te chama de linda.

Penso que não há maneira de manter a ocitocina elevada por 60 anos quando você tem que dividir a cama com um ser humano que ronca igual a uma Kombi de caldo de cana. Ou quando a fulana implica diariamente com a tampa do vaso sanitário levantada, sendo que o mesmo esforço que a Kombi fará para levantá-la, a chatiane fará para baixá-la. Dividir a vida e o aluguel com uma pessoa sem dominar todas as técnicas de resiliência é impossível, e pensando na semântica isso fez todo o sentido. O diamante é uma pedra bruta que precisa ser lapidada com muito esmero para revelar sua melhor forma.

Aos 27 anos, posso dizer que tirei da lama algumas pedras bem brutas, que gritavam comigo em público, me trancavam no carro e me convenciam de que era um favor se interessarem por alguém tão insuportável quanto eu. Não posso me orgulhar de ter conseguido transformar essas pedras em preciosidades, até porque a minha formação em Letras não tem bacharelado em design de joias. Mas não quer dizer também que eu não tenha tentado, baixando tutoriais para aprender a arte do contorno da situação.

Eu aprendi a talhar a aspereza daqueles gritos e moldar uma aliança rústica. Peguei aquelas mensagens no celular mais suspeitas que o casal Nardoni e fiz uma elegante tiara de chifres cravados de svarovski. Construí até um ateliê para armazenar todos os desaforos que levei para casa. Já os chás de sumiço que me deram eu engoli sem açúcar mesmo.

Demorou até eu ter a epifania de que, ao contrário dos diamantes, relações podem ser efêmeras. Isso me permitiu viver com bijuterias apenas pelo tempo em que elas combinassem comigo, não oxidassem e não me dessem alergia, sem precisar colar um termo de garantia vitalícia na testa. Esse tipo de liberdade não recebe aplausos, mas para mim é indiferente, já que eu não poderia usar aplausos para pagar as sessões de análise que meu plano de saúde não cobre. O tratamento para o traumatismo corniano é caro, e não é pago com confetes.

Quando o programa acabou, enquanto os créditos subiam e papéis picados caiam, o casal permanecia sorrindo, com olhos marejados e estáticos, dentes cerrados, tentando não deixar escapar pela boca todos os sapos e comprimidos que precisaram engolir para virar manchete. Eles tinham tanto a dizer. Pareciam se desculpar por não poderem detalhar cada tropeço para concluir a maratona com obstáculos e justificar todos os hematomas cobertos com esparadrapos em formato de coração.

Decerto, o diretor devia estar gritando no ponto: “Estamos sem tempo! Sejam breves… Como as relações de hoje em dia!”. Restou a mim apenas a ideia de que para ostentar uma pedra preciosa é necessário antes se certificar de que pode suportar o peso dos quilates de tantas concessões. Mas de qualquer forma, no final fica tudo bem. Tudo joia.

Vanessa A
Enviado por Vanessa A em 17/06/2018
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