LEMBROU-SE DO SEU EU E CHOROU

LEMBROU-SE DO SEU EU E CHOROU

Ele, então, entrou no quarto para procurar uma caneta. Precisava fazer algumas anotações dos relatórios do serviço. O expediente terminava às 18h, mas sua auto cobrança fazia com que trabalhasse quase 24 horas por dia. Estranhamente, não conseguia encontrá-la, até agarrar uma caixa empoeirada, lá no fundo do guarda-roupas. Sua feição mudou. Nela, não tinha a caneta, mas tinha lembranças.

Com ela em mãos e os olhos fixos, sentou-se lentamente na beirada da cama. Parecia que algo havia lhe atingido – e de certa forma, atingiu. Assim que abriu a tampa, viu a foto dele quando criança junto de seu avô. Há nove anos não ouvia mais sua voz e nem sentia seus cuidados. Lembrou-se imediatamente de quando acordava cedinho aos domingos e ia, nas costas dele, até a feira comprar verduras. E chorou.

Logo embaixo, outra foto. Nesta, ele estava no sítio cercado dos tios sorridentes, da empregada antiga da fazenda, do pai e da mãe, que agora estão divorciados, dos avós, e dos amigos. Amigos que há anos não tinha notícias, mas prometera na infância amizade e companheirismo eternos. Tudo tinha se desfeito. E pior, de forma imperceptível. Como esses momentos acabaram assim, tão depressa?

Ele percebeu que o tempo estava passando, terminando. A dona Maria, vizinha do bairro, tinha morrido há dois meses. Acabou observando que as pessoas não são eternas. Nunca mais sentiria o cheiro dos biscoitos que ela fazia para ele e as dezenas de crianças que brincavam na rua. Inclusive, essas crianças já não o viam mais. Alguns já se tornaram pais, se casaram, outros presos, uns, nem imaginava onde poderiam estar. Sobraram dois ou três que realmente tinha amizade.

Na bagunça da caixa, abriu a primeira carta que recebeu da garota que o amava. Foi, logo mais, seu primeiro amor. O amor mais puro e delicado, mesmo adolescente. Lembrou-se do dia que ela precisou ir embora da cidade porque o pai fora transferido de serviço. O pior dia de sua vida, até então. Teve o inédito coração partido. Era isso o tal amor? Se fosse, doía muito.

Viu, também, a pulseira que ele e seu melhor amigo compraram para usar como prova da amizade, o primeiro celular, a agenda escolar com os dizeres escritos dos amigos, os horários das aulas do ensino médio, as provas com as notas ruins em português – nessa hora sorriu –, o anel de côco que comprou na primeira viagem sozinho ao litoral, a carteira que ganhou do pai quando criou “idade de homem” e até o contra cheque do primeiro emprego.

Puxa, quanta coisa passou pela sua cabeça naqueles poucos minutos. Quantas pessoas já não fazem mais parte de sua vida e também não poderiam mais fazer. Que saudade sentiu da sua casa raiz quando convivia a família completa. Do café da manhã, dos almoços de domingo e das reuniões grandiosas dos parentes no sítio.

E chorou novamente. Não de tristeza, mas de saudade. Em silêncio, agradeceu por ter passado por todos esses momentos sensíveis e alegres; mais: por conseguir guardar todas essas lembranças naquela caixa. Levou o olhar para a parede em frente sua cama e analisou como tudo mudara. Será que a criança que ele foi se orgulharia do adulto que se tornou? Os momentos passados lhe fazem falta, mas o tempo corrido não o deixa perceber isso.

Tampou a caixa, enxugou o rosto e se apressou para encontrar a caneta. Os momentos bons estão em seu coração agora, mas o tempo, como acabara de perceber, passa rápido, por isso teria que se dedicar logo aos dados do relatório; o prazo de entrega estava próximo. Guardou os objetos e voltou à vida real. Esqueceu logo do avô, dos tios, dos pais juntos, dos almoços e dos amigos da infância.

Após encontrar a caneta, o homem de negócios exemplar estava afundado nos estudos e no serviço. No dia seguinte, ele receberia elogios por ser assim. Era hora de trabalhar, até porque lembrar de momentos bons não enche o bolso e nem a conta bancária; muito menos te dá destaque social. Em outros momentos também perceberia, de novo, que o tempo estava passando e, o que vivia agora, estaria dentro da caixa como saudade. Como lembrança. Lembrou-se do seu eu e chorou. Mas seguiu a vida.