NO CIRCO

O Circo Internacional Cruzeiro do Sul fazia sucesso e amealhava gordas bilheterias por onde passava. Seu fundador, nascido em Cruzeiro do Sul/RS, mudou-se para a vizinha cidade de Lajeado, ainda criança. Filho único, órfão de pai, garimpava trocados pelas ruas fazendo piruetas e andando em pernas de pau. Circense por vocação, não perdia um só circo plantado em Lajeado. Oferecia-se para prestar serviço em troca de ser aproveitado, nem que fosse como coadjuvante ou apoio. Apesar de talentoso, nunca conseguiu ser incluído definitivamente nas trupes.

Nas ruas, imitava o Chacrinha da TV. Microfone no pescoço e buzina “fon-fon” na mão, repetia com sotaque e trejeitos repisados jargões: “alô dona Margarida, como vai a sua vida...” Assim, se tornou localmente conhecido como O Palhaço Fonfon.

Pequena propriedade herdada de seu pai, em Cruzeiro do Sul - outrora sem valor - ganhou repentinamente bom preço, por conta da acelerada expansão urbana. Já sem sua mãe, fez um bom negócio, conseguindo recursos suficientes para comprar o que sobrara de um falido circo mambembe regional.

Reciclou a trupe, contratou novos artistas, adquiriu nova lona, geradores de energia e outros equipamentos. Arranjou até crédito bancário para novos investimentos. Sob o regime de parceria societária, atraiu bons artistas, dentre eles os “Irmãos Alvarez”, invejáveis trapezistas guatemaltecos.

Fonfon era do tipo concentrador. Aceitava sugestões, mas não cedia espaço na produção, tampouco na direção do espetáculo.

Solteirão, novato na casa dos quarenta, todo poderoso da organização, não se acanhava em fazer corte para as damas da trupe, mesmo as casadas.

Suas tentativas em namorar a trapezista Isabelita foram desastrosas. Flagrado ao tentar espiá-la na intimidade pelo buraco da fechadura, por pouco não perde seu grupo guatemalteco. O ambiente na companhia ficou turvo por semanas, até a morte de Isabelita num trágico acidente. Num salto triplo, o trapezista aparador – seu tio – falhara fatalmente ao tentar segurá-la. A rede de proteção mal tensionada não amenizou o forte impacto de cabeça no solo.

Lavada a tristeza do luto, Fonfon passou a assediar a jovem equilibrista Dolores, filha e partner do pirófago e atirador de facas paraguaio Garcez. A moça não conseguia esconder seu incômodo em dividir o mesmo trailer com seu pai. Homem avesso ao banho, com insuportáveis odor de querosene, mau hálito e temperamento. Embriagava-se com frequência. Isso agravava uma já encardida antipatia entre Fonfon e Garcez. Fonfon não despachava Garcez da companhia para não perder Dolores, seu xodó no elenco.

Certa madrugada Dolores abandou seu trailer aos prantos. Foi acolhida por Fonfon em seus aposentos.

A pedido, foi excluída de participação no “número” das facas. Com o recrutamento e treinamento de uma nova partner e compromisso de Garcez em abster-se do álcool, essa apresentação voltou a compor o espetáculo.

O “numero” das facas contemplava surpreendente final. A partner era vestida em macacão inteiriço até a cabeça, amarrada contra uma roda giratória de madeira. Sob movimento, Garcez atirava-lhe afiadas machadinhas ao redor do corpo. A última machadinha, fingindo erro de pontaria, era propositadamente direcionada ao centro da cabeça. Um grito soava no sombrio ambiente. Líquido vermelho completava a simulação de acidente fatal. Claro, tudo combinado e ensaiado. O macacão com gola larga permitia à partner recolher a cabeça para baixo, de modo que a machadinha na verdade atingia uma caixa vazia. A partner libertava-se das amarras e do macacão, exibia-se bela, íntegra e fagueira. Dolores conhecia bem esse papel, após centenas de apresentação.

Se infeliz com seu pai, pior com o patrão. Assim, lamentava Dolores às colegas da trupe. Detalhando nojentos hábitos de seu companheiro, confidenciava não mais suportar aquela convivência. Algo lhe assombrou certa noite a ponto de buscar refúgio junto às trapezistas. Deixou claro seu desejo de voltar à apresentação das facas com Garcez, desagradando profundamente sua suplente que já se julgava inabalável titular.

A estréia em Caxias do Sul foi aberta com muito luxo e cores. “Respeitável público...” Desfile de atores, figurino de bom gosto, música e tudo para invocar alegria.

Na apresentação das facas - uma das últimas - Dolores, sorridente, retomava seu posto. Bem maquiada, vestindo maiô azul, luvas prateadas e sapatos de salto cravejados de strass. Tudo novinho e com muito brilho. Apresentação impecável. No quadro final, iluminação em penumbra, como programado, Dolores já aparece no macacão amarrada ao tablado redondo. Os giros começam bem como os lançamentos de machadinha. O último lançamento – como previsto - cravado na cabeça, assim como fora ensaiado. Contudo, Dolores é libertada da vestimenta, desfalecida, ensangüentada e nos últimos suspiros.

Peritos apuraram que a gola por onde a atriz recolheria a cabeça estava estreitada, impedindo o procedimento de esquiva. Não se tratava de acidente, mas de crime. As investigações, estendidas ao acidente anterior com a trapezista Isabelita, mostraram ser aquele também um crime premeditado.

Com a identificação, o julgamento e a prisão do (a, os, as) culpado (s, a, as), o circo acabou!

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 21/06/2018
Código do texto: T6370440
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