LORDÃO

Naquele domingo ensolarado, reunidos dirigentes de federações futebolísticas, cartolas, treinadores, atletas, emissoras de rádio e TV, jornalistas nacionais e estrangeiros. Todos com elevado interesse na pauta: Seleção Brasileira de Futebol, inovação no estilo de jogar, convocação da equipe técnica treinadora e dos atletas para disputar a próxima Copa do Mundo. Embora também mascarados como novidades, uniforme, grifes patrocinadoras e contratos com a mídia para divulgação e transmissão dos eventos etc. já estavam previamente acertados nos bastidores.

Lordão presente. Nutria esperança em compor a equipe técnica da Seleção. O Presidente da CBF abriu o evento falando o que Lordão queria ouvir. Execrava os formatos estruturais e de jogo experimentados até aquela data. Criticava as equipes dirigentes das últimas décadas. Não se acanhava em debitar a vergonhosa imagem do futebol brasileiro aos desacertos, à incompetência e à falta de criatividade para surpreender adversários, jogadores e espectadores. “Tudo o mesmo conjunto vazio de sempre”, resumia em alto tom de voz. Quebrar tabus e tradições, era claro o recado para corrigir equívocos e desacertos que permearam o selecionado canarinho nos últimos tempos.

Mesmo passando um pouco da idade atlética desejável, Lordão ainda conservava seu invejável porte troncudo, musculoso. Com altura de jogador de basquete, assustava qualquer oponente numa briga de tapas. Muito mais merecedor do apelido “Hulk” que outra peça que andou vestindo a camisa da Seleção. Sobressaíra-se como zagueiro central, tipo “xerife de área”. Daqueles beques em que atacante mais bola não passam em sua área. No máximo, só um deles. Incrivelmente, quase não cometia falta. Comentaristas esportivos explicavam que era mais por temor do adversário à ousadia de enfrentá-lo. Excelente líder organizador da defesa e de armação do ataque, sabia exatamente onde e como cada ator deveria estar na jogada: zagueiros, alas e volantes. Impunha-se com destemido rigor. Esbravejava, xingava e aplicava vigorosas broncas, muitas acompanhadas de puxões de gola da camisa e, literalmente, de orelhas, quando a pixotada e desatenção assim mereciam. Portava-se como rigoroso técnico – em jogo - no interior das quatro linhas. Em favor da eficiência e eficácia, não titubeava em contestar o técnico de beirada de campo.

Lordão era ímpar. Sem conhecimentos teóricos, inaugurara um inédito estilo de arrumação, postura e estratégia de jogo. Aparentemente pautado na retranca. Até o chamavam de “retranqueiro”. Injustiça! Seu estilo estava mais para o de “defesa com armação dinâmica”. Pressentia e calculava, com precisão magistral, o dinamismo do avanço adversário. Orientava sua zaga a antecipar (não obrigatoriamente adiantar) e combater em bloco, sem cochilo, nem erro de tempo. Antevia o tipo de jogada em andamento pelo adversário e – aos gritos de arrumação - não lhe dava chance de concretizar.

A reunião continuava com a fala contundente do novo presidente da CBF, arrancando aplausos e “muito bem” dos presentes.

Apertado ao extremo pelo intestino, Lordão erguera-se para aplaudir o discurso. Não se agüentou e soltou uma bufa (pum) presa de horas. Para seu azar, veio junto um “tolete” de uns doze centímetros que lhe escorreu calça abaixo. Usava cueca “samba-canção”. Para evitar vexame, abaixou-se e pegou o troço ainda encapado pela umidade. Disfarçou e saiu em busca de um vaso sanitário, uma lixeira, uma pia, um canto atrás da porta, um ...

Carregava o “produto” camufladamente na mão direita. Ao tentar sair do auditório foi intimado, pelos seguranças, a mostrar o que conduzia, com tanto zelo. Negou-se e preferiu reingressar no salão. Notou uma providencial varanda, de onde poderia atirar a coisa fora. Era um salão de jogos onde a garotada jogava ping-pong, dentre outras coisas. Sua entrada na varanda coincidiu com uma bola vinda em sua direção. Embora tenha desistido de pegá-la, seu gesto - a carregar algo na mão - dava a impressão de um louco tentando apoderar-se disfarçadamente da bola perdida.

Os demais presentes não entendiam o comportamento ameaçador dos garotos, tampouco sua fuga com a mão encostada na barriga. Reingressou no auditório, naquele momento sob silêncio atencioso às convocações. Foi quando o Presidente da CBF anunciou a convocação de Lordão para compor a equipe técnica da nova Seleção, como “Atleta Treinador Adjunto”. Todos buscaram com a cabeça o novo convocado. Em pé, com a mão melada e mal cheirosa, fugia agora desesperadamente dos cumprimentos. Conseguiu ver o sanitário masculino na outra extremidade do salão.

Sem se importar com as considerações negativas que certamente viriam dos presentes, principalmente dos críticos, fez do corredor do auditório uma pista de atletismo e chegou ao banheiro. Atrás dele um ror de amigos, admiradores e curiosos. Enclausurou-se num cubículo reservado. Desfez-se do produto e aproveitou para largar outros no vaso. Limpou-se, inclusive a mão. Aguardou até que dissipasse a multidão que parecia em seu aguardo por ali.

Quando saiu, o auditório já estava vazio. Ficaram poucos amigos que lhe deram a triste notícia anulatória de sua convocação, por manifesto desinteresse do convocado.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 21/06/2018
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