SER MÉDICO

Pelas décadas iniciais do século passado ainda era comum a presença nos vilarejos interioranos de praticantes da medicina sem diploma acadêmico. Eram chamados médicos farmacêuticos, práticos em medicina, “esculápios” nas missões sanitaristas do governo imperial etc.

Muitos, sentindo-se pouco prestigiados, quando comparados aos doutores diplomados, se proclamavam médicos de verdade. Forjavam em gráfica um falso diploma bem emoldurado para ostentá-lo na parede frontal do consultório. Contavam com a precária fiscalização profissional para não serem incomodados.

Gaspar era um desses. Antes de se intitular médico, residir e estabelecer consultório numa pequena vila no interior de Goiás, fez por onde obter informalmente uma generosa dose de habilidades e conhecimentos médicos.

Sem condições financeiras para frequentar o curso superior de medicina, empregou-se como representante divulgador de medicamentos numa indústria do ramo em Curitiba/PR, sua terra natal. Obcecado por aprender coisas da medicina, lia todas as bulas que lhe chegavam. Sanava seu desconhecimento consultando dicionários, livros, almanaques e outras fontes, inclusive, o velho boticário Almir Coelho, feito seu amigo pela elevada frequência com que era acionado para elucidar termos técnicos das bulas.

Terminou conhecido nos cantos e recantos do Paraná. Fazia-se íntimo de médicos, dentistas, farmacêuticos, práticos e formados. Proseava sem restrição com parteiras, curandeiros, rezadeiras e até pajés. Das parteiras, aprendeu como assistir parto e cuidar de recém nascidos.

Ampliou suas atividades e seu saber quando estendeu seus serviços a fornecedores de material para gabinetes dentários, clínicas e hospitais, incluindo instrumental cirúrgico, equipamentos e aparelhos para salas de cirurgia.

Chegou a dominar técnicas cirúrgicas. De início, apenas presenciando; mais tarde, participando ativamente de operações; das mais simples como o lancetamento de furúnculos e panarícios, até a extração de dentes, apêndices e vesícula biliar. Suturas pós-cirúrgicas e de reparo em lesões, assim como imobilizações ortopédicas, não lhe eram novidade.

Instalado numa pequena vila de Goiás, Gaspar era tido e havido como médico de verdade. Cobrava consulta apenas dos bem de vida, fazendeiros, agiotas, comerciantes, donos de garimpo etc. Dos pobres, nada pedia em pagamento. Todavia, não lhe faltavam presentes e agrados, como galinhas, patos, leitões, frutos, doces, artesanatos e outros mimos.

Amealhou um montão de afilhados, compadres, comadres e amigos. Sua presença era disputada para almoços familiares, aniversários festas e reuniões.

Apesar desse ardente carinho popular, alguns fazendeiros e garimpeiros não lhe manifestavam querência. Geralmente por ciúmes, principalmente da parte dos casados ou amasiados com mulher bonita. É que esses costumavam passar dias gerenciando seus interesses na zona rural ou nos garimpos, longe de suas esposas e amásias. A invejável beleza física do médico ensejava perigo e risco à pulada de cerca das “cabritas” de fidelidade pouco confiável.

De fato, dr. Gaspar, descendente de italianos, possuía feições e físico do tipo europeu. Esbelto, cabelos castanhos sempre alinhados com têmporas parcialmente grisalhas, sempre bem limpo, barbeado, simpático, exibia sem esforço gestos amáveis com quem dele se aproximasse. Ainda que solteiro e descompromissado, era reconhecidamente respeitador e religioso.

Contudo, para apimentar o desconforto dos preocupados com possíveis chifres, os contumazes fofoqueiros de língua viperina insinuavam ter provas de furtivos encontros do médico com dondocas admiradoras nos cantos e moitas da escuridão, paisagem típica de uma vila rudimentar sem eletricidade, nem iluminação pública. Havia até quem afirmasse ser Dagmar - a teúda e manteúda do Coronel Fulgêncio – sua maior freguesa nas ausências do coronel-garimpeiro.

Os rapazotes que faziam ponto e barulho no bar de Afonsinho também morriam de inveja do dr. Gaspar e seu potencial para “pegar” quem desejasse. Juntavam-se aos inseguros machões da vila para urdir artimanhas contra a reputação do dr. Gaspar. De quebra, cobiçavam as mulheres que imaginavam desejosas de aventuras.

Para tanto, encharcavam de cachaça Maneco - um sem teto meio doido quando sóbrio e doido e meio quando bêbado – para, do alto de uma mesa na calçada do bar, vociferar os últimos fuxicos locais, dando nomes, lugares, datas e até maneiras das traições. Mentirosas, para uns. Verdadeiras ou com algum fundo de verdade para os que delas quisessem tirar proveito.

Ninguém tinha coragem era de falar do Coronel Egas, o mais poderoso e temido não só do local como da região. Não dispensava uma arma exposta na cintura e o secto de capangas bons de tiro. Contava-se, nunca ter deixado desafeto em pé, principalmente quando o ciúme lhe queimava os miolos. Sua esposa-matriz residia na vila cuidando de cinco filhos.

Dono de quatro garimpos, em cada um deles tinha uma manceba, guardada por jagunços de fé para evitar aproximação de estranhos. A mais recente e jovem do plantel – seu especial xodó - era Gracinha, com dezesseis anos, já em gravidez avançada.

Com valentia e dinheiro, Coronel Egas comandava um batalhão de jagunços. Fazia-se temido e respeitado. Assumia informalmente os poderes de delegado, prefeito e juiz do local. Poderoso, ditava regras sociais e exercia forte e inconteste liderança comunitária e regional, reconhecida até por autoridades governamentais.

Coronel Egas fazia parte dos que não confiavam plenamente na retidão do médico. Mas, pelos serviços prestados à comunidade, reconhecia-o como indispensável.

Certo dia, logo após a madrugada, bateram na porta da residência-consultório do dr. Gaspar três enviados do Coronel Egas, exigindo que os acompanhasse até o garimpo para atender a Gracinha, a amante do Coronel em trabalho de parto. Relataram que a coitada, ainda adolescente, urrava de dor há mais de um dia, sem conseguir dar à luz seu primeiro filho. O Coronel também penava agoniado. A parteira contratada dizia que a criança estava atravessada e nada podia fazer.

Dr. Gaspar, ouviu o relato. Nunca fizera um parto por cesariana como sugeria o quadro. Pior seria fazê-lo pela primeira vez num garimpo, sem confiável assepsia para tal procedimento. Mas, não convidado, sim convocado por quem decidia as coisas com balas e gatilho, não hesitou em arrumar sua maleta de atendimento e seguir com os mensageiros.

Embora aberto a prosa, mesmo com estranhos, dr. Gaspar evitava receber divulgadores de remédios. Conhecia bem essa gente. Temia ser reconhecido como não diplomado e se tornar vítima desse segredo quando transformado em negócio.

Todavia, não contou com a sorte. Dia anterior à sua missão de atender a amante do Coronel Egas, no garimpo, aparecera-lhe no consultório o representante de fármacos, Zenon que não tardou a descobrir a identidade médica enganosa de Gaspar. Prometeu-lhe sigilo, mas, entre uma e outra dose de traçados diversos, terminou abrindo o segredo aos convivas de copo.

Foi como se caísse uma bomba atômica de indignação entre os presentes. Rapidinho, o estoque de bebidas de Afonsinho caminhava ao fim. Falaram cobras e lagartos do dr. Gaspar. Deram-lhe os piores adjetivos. Uns recomendavam sua expulsão sumária da vila, debaixo de taca. Outros, prisão, desmascaramento e apedrejamento em praça pública. Sugeriram até incendiar sua residência e consultório.

Logo, formaram-se patrulhas de voluntários para a execução das penas. Providenciaram cordas e arame farpado para amarrá-lo no troco do ipê da praça, pedras grandes e pequenas para estilingues, relho molhado para a surra, querosene para o incêndio etc.

Mas, considerando que qualquer providência só poderia ser efetivada com a aprovação superior, marcharam em turba até a residência do Coronel Egas. Dar-lhe-iam ciência do crime de falsificação profissional do médico local e obteriam autorização para o linchamento público. Estavam certos do consentimento, conhecedores dos humores negativos do Coronel para com o falso médico. Decepcionaram ao saber de sua ausência.

Não satisfeitos, seguiram para a residência-consultório do dr. Gaspar a fim de encarcerá-lo preventivamente na pocilga de Ramon. Por lá, também souberam de seu deslocamento para o garimpo levado por seguranças do Coronel Egas.

Essa informação suscitou ilações do tipo:

- O Coronel soube antes de nós e já levou o criminoso para pagar seus pecados no garimpo!

- Vai jogá-lo num daqueles buracos da mina e deixá-lo morrer de fome!

- Vai usá-lo como burro de carga para morrer transportando cascalho!

- Aprisionou-o antes que fugisse! Isso sim!

Houve quem, diferentemente, dissesse que o doutor, sabendo-se perdido, se acoitara a implorar misericórdia e proteção ao Coronel.

- Não conseguirá! - Completavam.

Enquanto isso, no garimpo, dr. Gaspar lidava com o difícil parto de Gracinha. Experimentava tudo que sabia mais alternativas que pudesse evitar a cesariana. Aliviava a parturiente das terríveis dores, aplicando-lhe analgésicos em doses não comprometedoras para uma provável cesária. Confortava-a com toalhas úmidas, orações, palavras de fé e consolo. Tentando colocar a criança na posição correta, recorreu a massagens e exercícios físicos que aprendera de uma parteira do Paraná e com índios locais. Horas de labuta.

Já anoitecia, quando, por sorte ou efeito dos procedimentos e orações, a criança nasceu de parto normal, sem trauma. Deu o primeiro choro e teve cortado seu umbigo com a maestria e experiência de um obstetra. O Coronel que assistia a tudo sorriu e deixou rolar lágrimas em seu rosto duro e seco. Abraçou demoradamente dr. Gaspar. Abriu uma envelhecida cachaça armazenada em moringa de madeira, serviu-a com requinte e apreço a si e ao médico. Celebrou com esfuziante alegria a chegada de seu mais novo rebento, de pronto, nomeado Gaspar. Coisa jamais esperada!

No ambiente do garimpo, sob autorização, produziu-se uma festiva algazarra, com tiros, fogueira, danças, comes e bebes.

Dia seguinte, o próprio Coronel, ladeado por numerosos seguranças e empregados, fez questão de acompanhar dr. Gaspar até a vila.

Na chegada, nova salva de tiros, vinda do secto acompanhante. Interpretada pelos pretensos carrascos, no alvoroço, como sinal de vitória sobre um criminoso aprisionado.

Na praça, ainda montado, Coronel Egas desconheceu aquela turba apetrechada de cordas, arames, pedras e chicote. Pediu silêncio e falou:

- Quero agradecer e homenagear dr. Gaspar. Aperto sua mão em sinal de respeito e admiração. É nosso querido médico. Com conhecimento, competência e dedicação ao povo desta vila tem aliviado muitas dores e salvo vidas. Nossa saúde tem dois tempos, um triste antes do dr. Gaspar, outro feliz depois dele. Esta praça pública, doravante, será chamada Praça dr. Gaspar. Demos um grande “viva” para ele!

Em coro, todos, especialmente mulheres e crianças, gritaram “Viva dr. Gaspar!”

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 25/06/2018
Código do texto: T6373824
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